
Entre janeiro e junho de 2025, 13.880 casos de violência doméstica foram registrados no Espírito Santo, o equivalente a 3,2 ocorrências por hora. São casos de mulheres vítimas de agressões físicas, psicológicas, sexuais ou morais.
Segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), os casos de violência doméstica cresceram 9,13% entre 2023 e 2024 no Espírito Santo. Só em Vitória, foram 926 ocorrências registradas neste mesmo período.

Por trás dessas estatísticas, há histórias marcadas por dor, silêncio e, muitas vezes, resistência. Uma dessas é a de uma mulher que encontrou acolhimento na rede de proteção de Vitória, especialmente na Casa Rosa.
Após anos em um relacionamento abusivo, ela procurou ajuda e iniciou o processo de reconstrução pessoal com apoio da estrutura oferecida pelo município.
Fui casada por 20 anos. Quando entrei nesse casamento, não conseguia enxergar o que estava acontecendo. Hoje eu vejo. Existe uma manipulação que vai destruindo a autoestima da gente, e você começa a achar que aquilo é normal, conta a vítima, que prefere não se identificar.
O ciclo da violência começou cedo no relacionamento, com agressões ao filho pequeno sob o pretexto de “correção”. “Ele dizia que eu era superprotetora. Fui acreditando nisso, me entendendo como errada. Chega uma hora que a manipulação é tanta que você se perde. A violência vai escalando”, relata.
A pior fase, segundo ela, veio quando o filho começou a se automutilar. Só então a vítima percebeu a gravidade da situação.
“Foi aí que percebi que não era só comigo. Busquei ajuda psicológica. A psicóloga identificou traços de personalidade no meu ex-marido que me alertaram.”
Durante quatro anos, a família passou por acompanhamento psicológico semanal. Apesar da terapia de casal ter contribuído para a diminuição das agressões físicas, as violências psicológicas não só persistiram como se intensificaram ao longo do tempo.
A violência psicológica é 10 mil vezes pior que a física. A física sara. A psicológica vira a sua identidade. Você deixa de saber quem é. Perde amigos, perde sua vida. Você vira um boneco, só pode fazer o que ele acha certo.
Ao longo do tempo, a vítima perdeu os pais, enfrentou o luto e, em 2022, se separou definitivamente. Mesmo após o rompimento, as tentativas de manter uma relação parental saudável com o ex-marido resultaram em mais dor.
Em 2024, um episódio envolvendo um passeio com as crianças marcou o ponto final: “Ele não deixava as crianças com telefone, mandava fotos no grupo que eu tinha com ele. Uma delas me chamou atenção: minha filha no colo dele, travada. Depois ela me contou, chorando, que não gostava dos toques, do jeito como ele a tratava”.
Foi então que a mãe entendeu que a relação era insustentável. “Ali acabou. Não havia mais respeito, nem limites. A gente que vive numa relação violenta precisa se ressignificar. Mas não é fácil. A vergonha, o medo, o julgamento… tudo recai sobre a mulher.”
A face invisível da violência
Clícia Dora Rocha, diretora da Casa Rosa, centro de atendimento especializado a vítimas de violência, reforça que a violência doméstica é um grave problema de saúde pública.
Não é só a violência física. Temos a violência psicológica, a moral, sexual e patrimonial. Muitas mulheres não percebem que estão em situação de violência porque esperam o tapa. Mas o controle, a humilhação, a chantagem emocional também são violência, explica a diretora.
Existe um ciclo dessa violência e ele é divido em três fases, segundo Clícia Rocha. Os estágios são: lua de mel, tensão e agressão. Veja abaixo as características de cada fase:

A psicóloga Clíslaine Oliveira explica que o agressor, muitas vezes, apresenta traços narcisistas, criando uma teia de manipulação que cerca a vítima por todos os lados.
Mesmo mulheres independentes, com carreira, autonomia, podem ser vítimas. O agressor a isola do círculo social, controla o financeiro e até propõe um filho como forma de manter o vínculo e dificultar que ela saia do relacionamento.

Ainda segundo a especialista, a violência emocional pode ser mais devastadora que a física. “Ela machuca por dentro, reflete no corpo, causa doenças. Muitas mulheres não denunciam porque acham que, como não houve tapa, não há crime. Mas há, sim. Violência psicológica é violência.”
Proteção e tecnologia
Em Vitória, mulheres com medidas protetivas têm acesso ao Botão do Pânico, ferramenta criada em 2014 que reforça a segurança das vítimas. Atualmente, 22 mulheres utilizam o dispositivo, que é entregue pela Guarda Municipal, após a concessão judicial da medida.
“Ao acionar o botão, a ocorrência chega imediatamente à nossa central e aos smartphones das viaturas”, explica a comandante da Guarda Municipal, Dayse Barbosa.
Ela complementa: “O botão capta o áudio do local e nos ajuda a entender a situação em tempo real. Atuamos imediatamente”.

Segundo a comandante, nenhuma mulher que utilizou o botão voltou a ser agredida. E os números mostram resultado: em 2025, Vitória não registrou nenhum caso de feminicídio até junho. São mais de 390 dias sem assassinato de mulheres na Capital.
Como a Casa Rosa funciona?
A Casa Rosa atende demandas espontâneas e recebe encaminhamentos de unidades de saúde, escolas, delegacias, Cras e Creas. A equipe é formada por psicólogos, assistentes sociais, médicos e outros profissionais capacitados a oferecer um atendimento humanizado.
A gente prioriza a escuta empática, sem julgamentos. Criamos um ambiente seguro para que a mulher possa romper o silêncio e reencontrar sua identidade, afirma Clícia Rocha.
A violência doméstica também afeta quem convive com a vítima. Crianças e adolescentes expostos a essas situações apresentam sinais de sofrimento mental, como depressão, automutilação, agressividade e até tentativas de suicídio. Por isso, o atendimento na Casa Rosa é estendido às famílias.
Quando você cria coragem de denunciar, é preciso ter provas e buscar ajuda. Existe uma rede pronta para acolher. Eu mesma fui acolhida pelo CRAMSV (Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência) e depois transferida para a Casa Rosa. Aqui, tudo que a gente vive é compreendido e tratado com respeito, relata a vítima atendida.
A psicóloga Clislaine reforça: “Relacionamento não é luta. É amor. Se você está sendo agredida, busque ajuda. Existem caminhos para sair disso e voltar a ser quem você era antes do abuso.”
Como e onde buscar ajuda
Se você está em situação de risco ou conhece alguém que esteja, não hesite em pedir ajuda. Em casos de emergência, acione a Polícia Militar pelo 190 ou entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher, no 180, que funciona 24 horas por dia, inclusive nos finais de semana.
Em Vitória, a Casa Rosa oferece atendimento gratuito e humanizado, com equipe multidisciplinar composta por psicólogos, assistentes sociais, advogados e pedagogos. Está localizada na Rua Hermes Curry Carneiro, no bairro Ilha de Santa Maria, sendo um espaço seguro para acolhimento e orientação de mulheres vítimas de violência.
Também é possível procurar o Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAMSV), que atua na escuta qualificada, no encaminhamento jurídico e no suporte psicossocial. O espaço fica na Casa do Cidadão, na Avenida Maruípe, em Itararé.
Para mulheres que possuem medida protetiva judicial, o Botão do Pânico é um recurso adicional de segurança. A ferramenta está disponível por aplicativo e conecta diretamente a vítima à Guarda Municipal de Vitória.