O ataque à soberania nacional brasileira que assistimos hoje — com Donald Trump pressionando abertamente o sistema internacional, usando tarifas como instrumento de coerção econômica e operando nos bastidores para tentar livrar Jair Bolsonaro de uma condenação — não é um episódio isolado, nem marca o início desse processo. Trata-se, na verdade, da continuidade e do aprofundamento de uma erosão iniciada com o golpe parlamentar de 2016, que destituiu a presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade e abriu as portas para um laboratório de austeridade radical no país.
O teto de gastos, inscrito na Constituição pela Emenda 95 logo após o golpe, tornou-se o símbolo mais perverso dessa inflexão histórica. Sob o pretexto de assegurar “estabilidade fiscal”, ele congelou os investimentos públicos por vinte anos, corrigidos apenas pela inflação, sacrificando áreas essenciais como saúde, ciência e educação. Consolidou-se, assim, uma política de austeridade estrutural que não apenas destrói as capacidades estatais, mas também subordina o país ainda mais profundamente às dinâmicas do capital financeiro global, comprometendo qualquer projeto de desenvolvimento soberano.
Nas universidades públicas, os efeitos são devastadores: cortes sucessivos em infraestrutura, bolsas, concursos, extensão, pesquisa e, sobretudo, assistência estudantil — fundamental para garantir a permanência da juventude negra, indígena, quilombola e periférica, que vinha transformando o perfil do ensino superior brasileiro após as políticas de ação afirmativa.
Mas algo novo surge no horizonte. Segundo a pesquisa Quaest divulgada recentemente, mesmo diante das ameaças tarifárias de Trump, a popularidade do governo Lula não só se manteve como apresentou sinais de recuperação. Isso revela um dado sociológico e político crucial: os ataques de Trump e sua instrumentalização colonialista provocaram no povo brasileiro não apenas indignação, mas uma reativação do sentimento de pertencimento, de nacionalidade.
Aqui é preciso mobilizar o conceito de nação como comunidade imaginada, de Benedict Anderson. Segundo Anderson, a nação é uma construção simbólica, uma narrativa compartilhada que permite a milhões de pessoas, que nunca se verão face a face, sentirem-se parte de uma mesma coletividade. Paradoxalmente, os ataques externos — sobretudo quando percebidos como injustos ou humilhantes — podem fortalecer esse sentimento de identidade coletiva.
O tarifação de Trump, e o ataque ao STF, ao ser lido socialmente como uma violação da soberania nacional, reforçou no imaginário popular brasileiro a percepção de que há um “nós” sendo atacado por um “outro” imperialista. Isso ajudou a recompor parte da conexão entre governo e sociedade, não apenas em termos pragmáticos, mas afetivos, simbólicos. Essa dinâmica nos obriga a pensar a soberania não apenas em termos jurídicos ou econômicos, mas como um ativo cultural, emocional, coletivo.
Nesse contexto, a universidade pública ganha uma centralidade ainda maior. Ela não é apenas espaço de formação profissional: ela é uma das principais fábricas dessa comunidade imaginada. Nela se forjam narrativas nacionais, memórias sociais, projetos civilizatórios. Quando sufocamos financeiramente a universidade pública, estamos não só destruindo empregos ou laboratórios, mas minando os alicerces simbólicos do que significa ser Brasil — estamos, como diria Muniz Sodré, desmontando aquilo que nos permitiria ultrapassar os limites da democracia cosmética: a possibilidade de ter não só o rito, mas também a substância democrática, popular, soberana.
Sob o teto de gastos, sob o bolsonarismo e sob as pressões externas do trumpismo, o Brasil foi empurrado a uma posição de vulnerabilidade internacional sem precedentes. Porém, como mostra a reação popular, há também aqui um campo de resistência. Não podemos ignorar que há no Brasil um potencial de mobilização simbólica capaz de transformar humilhação em afirmação, ataque em pertencimento, destruição em reconstrução.
Os impactos regionais são brutais. Em especial aqui na região Nordeste, as universidades federais não são apenas centros de ensino, mas motores econômicos e culturais, responsáveis por dinamizar mercados locais, gerar empregos, produzir saúde, educação, tecnologia e arte. O teto de gastos, ao lado dos ataques bolsonaristas e trumpistas, atinge não apenas a esfera acadêmica, mas a base material e simbólica da soberania brasileira.
A chamada “pátria educadora” virou pátria sitiada. Sob o discurso de conter gastos, escancarou-se a pilhagem: para o capital financeiro, juros acima de dois dígitos; para as universidades, teto e asfixia. Para os ricos, blindagem; para o povo, a precarização da esperança.
Precisamos nomear o que está acontecendo. O teto de gastos não é apenas uma escolha fiscal — ele é um instrumento de guerra social, de aprofundamento da dependência externa e de ataque à construção de um projeto democrático, soberano e popular no Brasil. Quebrá-lo não é um capricho progressista: é um imperativo de sobrevivência nacional.
Como sociedade, não podemos aceitar passivamente esse processo de desmontagem. As universidades são patrimônio do povo brasileiro e ferramenta indispensável para reverter não apenas a desigualdade social, mas a desigualdade epistêmica e política que nos mantém no papel de periferia global. Retomar o investimento público, proteger a autonomia universitária e enfrentar a ofensiva neofascista são tarefas urgentes para reconstruir o país — e, sobretudo, para reconquistar o direito de imaginar um futuro que ultrapasse os limites estreitos da democracia cosmética.
*Richard Santos, também conhecido como Big Richard, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), pioneiro da cultura Hip Hop no Brasil. Coordena o grupo de pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo (UFSB/CNPQ). Está lançando seu novo livro- Comunicação em Disputa: A Luta pelo Imaginário da América Latina na Era Trump (Editora Telha, 2024), no qual analisa os desafios da soberania simbólica latino-americana frente ao colonialismo midiático e digital.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.
O post O Brasil não está à venda: teto de gastos, Trump e o ataque à nossa soberania apareceu primeiro em Brasil de Fato.