
Indígena denuncia múltiplos estupros em delegacia no interior do AM
A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) solicitou prisão domiciliar para a mulher indígena da etnia Kokama, de 29 anos, que denunciou ter sido estuprada por policiais durante o período em que esteve presa de forma irregular na delegacia no interior do Amazonas. Segundo o órgão, o pedido foi feito ainda em dezembro de 2022, após a transferência dela para unidade prisional em Manaus, no entanto, acabou sendo negado.
Em denúncia, a indígena afirma que foi abusada durante nove meses na 53ª Delegacia de Santo Antônio do Içá, após ser presa em novembro de 2022. Os abusos teriam começado enquanto ela amamentava o filho recém-nascido, que permaneceu com ela por quase dois meses.
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De acordo com a Defensoria Pública, a denúncia só chegou ao órgão em agosto de 2023, após a transferência da vítima para o centro de detenção feminina localizado na capital amazonense. Desde então, a instituição passou a acompanhar o caso, realizando 65 atendimentos jurídicos e psicossociais.
No entanto, a Defensoria informou que já havia protocolado, em dezembro de 2022, um pedido de prisão domiciliar, com base na presença do bebê na cela e nas condições degradantes da custódia. O pedido foi negado pelo Ministério Público.
O defensor público Murilo Breda, coordenador do Polo do Alto Solimões, que atende o município de Santo Antônio do Içá, reforçou que a instituição agiu.
“Assim que soubemos que havia uma mulher presa com um recém-nascido, protocolamos pedido de prisão domiciliar em dezembro de 2022 e reiteramos esse pedido várias vezes, sem resposta até hoje”, destacou.
Em entrevista, o advogado da vítima, Dacimar Carneiro, revelou que o requerimento com pedido de prisão domiciliar só foi analisado em maio de 2025, quase três anos depois. Ele também contou que o documento encaminhado à Vara de Execuções Penais não condizia com os relatos prestados pela mãe da indígena e pelo padrasto.
“Ela me falou que nada que estava naquele relatório foi o que elas falaram. E que ela disse que necessitava urgentemente da presença da indígena pra acompanhar os filhos”, afirmou.
O advogado explicou que, na época, a decisão judicial se baseou em um laudo psicossocial que concluiu que os filhos da indígena estavam sob cuidados dos avós e que, portanto, não haveria urgência na presença materna.
A Defensoria também lembrou que chegou a solicitar, anteriormente, que o tempo de prisão na delegacia fosse contado em dobro, como medida compensatória pela execução antijurídica da pena, conforme jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O pedido também foi negado.
O defensor público Theo Costa, coordenador do Núcleo de Atendimento Prisional (NAP), reforçou que o caso é um dos mais graves já registrados pela instituição. “Ela foi estuprada durante o resguardo, com o filho de 20 dias ao lado. Os abusos foram cometidos por policiais da delegacia, à noite, por quase dez meses. Isso é inaceitável”, declarou.
Na última quinta-feira (23), o Ministério Público do Amazonas informou que ingressou com o pedido para que a indígena cumpra o restante da pena com tornozeleira eletrônica, fora do sistema prisional. O pedido ainda não foi julgado.
Ainda de acordo com o MP, uma equipe multidisciplinar, coordenada pelo Núcleo de Apoio às Vítimas e Vulneráveis (Naviv/Recomeçar) e pelo Centro de Apoio Operacional de Combate ao Crime Organizado (Cao-Crimo), foi enviada a Santo Antônio do Içá para prestar atendimento psicossocial à indígena e sua família. A equipe inclui assistentes sociais, psicólogos e profissionais do direito.
Em relação a investigação criminal contra os agentes citados segue em andamento.
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O processo
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Divulgação
A Rede Amazônica teve acesso ao processo. De acordo com a denúncia, como não havia cela feminina na delegacia, a mulher foi colocada junto com presos homens. Foi nesse contexto que os abusos começaram.
A prisão ocorreu em 11 de novembro de 2022, após uma vizinha chamar a Polícia Militar por suspeita de violência doméstica entre a indígena e o companheiro. Ao chegar à delegacia, os policiais descobriram um mandado de prisão em aberto contra ela, por suposta participação em um homicídio em Manaus, em 2018.
Já os abusos teriam começado ainda em novembro de 2022, enquanto ela amamentava o filho recém-nascido.
O caso só foi denunciado às autoridades em 27 de agosto de 2023, quando ela foi transferida para a Unidade Prisional Feminina de Manaus nove meses após a prisão.
Ação de indenização
53ª Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas.
Divulgação/Polícia Civil
Entre as provas anexadas ao processo há o relato de que um juiz teria visitado a carceragem da delegacia antes do Natal de 2022, constatado as irregularidades e ordenado verbalmente que ela fosse retirada do local — o que não ocorreu.
“O juiz disse para o delegado que ela não era presa dele e que tinha que mandar ela embora de lá. Que sabia que ela estava com o bebê na delegacia. Depois disso, nunca mais o viu”, disse a vítima em depoimento anexado ao processo.
Ela também revelou ter sido obrigada a consumir bebida alcoólica com os policiais durante os abusos. “Os estupros aconteciam à noite, nos plantões. Em todas as áreas da delegacia. Os outros presos não falavam nada porque também eram torturados”.
A defesa argumenta que o Estado foi omisso ao manter a mulher presa em condições degradantes, sem qualquer assistência médica ou psicológica, mesmo estando grávida — situação que, por lei, garantiria direito à prisão domiciliar. O pedido, no entanto, ainda não foi analisado.
Além da indenização, a indígena solicita acompanhamento médico e psicológico urgente fora da prisão e que o tempo sob custódia do Estado seja contado em dobro, devido às violações sofridas.
O presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargador Jomar Fernandes, determinou o imediato envio das informações sobre o caso à Corregedoria-Geral de Justiça do Amazonas (CGJ/AM) para que instaure, com a máxima urgência, a apuração dos fatos.
A Defensoria Pública do Amazonas informou que tomou conhecimento, no dia 28 de agosto de 2023, e que após o relato, solicitou o encaminhamento da vítima à Delegacia da Mulher, onde foi realizado exame de corpo de delito no mesmo dia.
“A Defensoria Pública reforça a gravidade das denúncias e destaca que seguirá acompanhando o caso de forma rigorosa. A Instituição também ressalta a importância de sua presença nas unidades prisionais como instrumento de fiscalização do cumprimento dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade”, diz um trecho da nota.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) pediu o afastamento imediato dos policiais denunciados. A Procuradoria Federal Especializada junto à Funai enviou ofício à Corregedoria-Geral do Sistema de Segurança Pública do Amazonas exigindo providências urgentes.
A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou que o caso está sendo investigado pela Polícia Civil, Corregedoria e Polícia Militar, que abriu um Inquérito Policial Militar (IPM).
O processo corre em segredo de Justiça.
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