A questão ambiental é, fundamentalmente, uma questão territorial, pois abrange o território em suas múltiplas dimensões ─ ambiental, política, cultural, econômica, energética e social. A recente e trágica aprovação do Projeto de Lei n.º 2159/2021, o “PL da Devastação”, constitui uma das evidências mais contundentes dessa realidade. Ao flexibilizar a legislação sob o pretexto de aprimorá-la do ponto de vista “ambiental”, o referido PL promove, na prática, uma flexibilização da destruição ─ não apenas da natureza, mas também dos territórios e dos direitos a eles associados: ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao direito à terra, a água, a alimentação, a cultura e tantos outros já garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O “PL da Devastação” evidencia que não é possível pensar o ambiente apenas pela dimensão da natureza, ou seja, em sua unidimensionalidade. A própria formulação e os interesses que sustentam esse projeto demonstram que o ambiente não pode ser reduzido apenas à natureza em sentido estrito, mas relacionado com as questões políticas, econômicas, sociais e culturais dos territórios. Os principais beneficiários da proposta ─ territórios vinculados ao agronegócio, à mineração, às infraestruturas e aos demais grandes projetos de desenvolvimento ─ compreendem bem essa relação multidimensional, articulada em todas as escalas geográficas. Não é por acaso que o PL da Devastação também é chamado de “mãe de todas as boiadas”, em referência à infeliz colocação do ex-ministro (da destruição) do Meio Ambiente Ricardo Salles em reunião ministerial em abril de 2020, em meio a pandemia da covid-19.

Aqui a ênfase será o agronegócio, especialmente pelo fato de a bancada ruralista ser uma das principais articuladoras do PL, na disputa política por sua aprovação no Senado e na Câmara e, igualmente, pressionando o Poder Executivo pela sua sanção. Não é de hoje que o agronegócio exerce influência na política ambiental brasileira, tornando-a um território em disputa em todos os âmbitos do governo ─ União, estados e municípios. Um exemplo emblemático é a aprovação do novo Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012), cujo texto refletiu significativos avanços para os interesses do agronegócio e retrocessos consideráveis ao direito dos povos em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse episódio fortaleceu ainda mais a capacidade de articulação do setor, em grande parte organizada a partir do Instituto Pensar Agropecuária (IPA), que atua na formulação de projetos de lei e na orientação de parlamentares sobre como votar em matérias estratégicas, evidenciando que “o lobby do agronegócio no Brasil é institucionalizado”.
Negação do licenciamento ambiental
O PL da Devastação representa um profundo retrocesso na política ambiental brasileira, sendo considerado um dos maiores nos últimos quarenta anos. Entre os pontos mais debatidos estão: a simplificação das regras de licenciamento para diversos tipos de empreendimentos; a criação de mecanismos como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite o licenciamento automático por meio de formulário autodeclaratório ─ inclusive para empreendimentos classificados como de médio potencial poluidor; e a Licença Ambiental Especial (LAE), que autoriza o governo federal a acelerar o licenciamento de projetos considerados estratégicos, mesmo que impliquem significativa degradação ambiental.
Soma-se a isso a retirada de garantias legais para territórios indígenas e quilombolas que ainda se encontram em processo de demarcação, bem como a descentralização das competências de licenciamento para órgãos ambientais estaduais e municipais, enfraquecendo a participação de órgãos técnicos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Essa última medida enfraquece a atuação de instâncias fundamentais do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e os conselhos estaduais. O que compromete a governança ambiental em escala nacional e transfere a responsabilidade do licenciamento às localidades, na qual as relações clientelistas entre prefeituras, latifundiários e corporações têm significativo poder de mobilização.

Em síntese, o chamado PL da Devastação pode ser compreendido como um projeto em que “licenciamento ambiental” significa, na prática, a sua negação. Sob o estigma da desburocratização, da modernização, da necessidade de revisão da política de licenciamento e da busca por segurança jurídica para as empresas, o projeto cumpre seu verdadeiro papel: o de abrir caminho para a devastação e para as boiadas. Seus efeitos não se restringirão a impactos mitigáveis; ao contrário, tendem a gerar danos de caráter irreversível.
Tendo como referência o texto do próprio documento, o PL da Devastação apresenta contradições e controvérsias no inciso 2 do Art. 1 de seu próprio texto, no qual afirma que “o licenciamento ambiental deve prezar pela participação pública, pela transparência, pela preponderância do interesse público, pela celeridade e economia processual, pela prevenção do dano ambiental, pelo desenvolvimento sustentável, pela análise dos impactos e, quando couber, dos riscos ambientais”. Este é um ótimo exemplo de eufemismos legislativos para mascarar os verdadeiros impactos territoriais em todas as dimensões dos territórios.
PL legaliza o desmatamento
E o que o agronegócio ganha com o PL da Devastação? O interesse do agronegócio na flexibilização da legislação ambiental no Brasil é um fato histórico, tendo em vista seus objetivos expansionistas e a incorporação de novas terras sob seu controle, seja para fins produtivos ou de especulação, favorecendo o caráter rentista. Isso evidencia as múltiplas dimensões da questão ambiental e sua indissociabilidade com a questão agrária, sobretudo pela perspectiva territorial, no qual a disputa e o conflito são fundamentais.
Com o PL da Devastação, a expansão do agronegócio por meio da incorporação de novas áreas será amplamente facilitada, independentemente dos danos causados ou das populações potencialmente atingidas. Além disso, o projeto possibilita a apropriação de bens comuns — como a água, bem público de domínio da União — com ainda mais facilidade. Isso porque o PL desobriga os empreendedores de apresentarem, durante o processo de licenciamento, documentos que comprovem o uso legal dos recursos hídricos e do solo, fragilizando o controle público sobre bens comuns essenciais à vida e à sustentabilidade dos territórios, fatores de interesse coletivo. Ou seja, o PL legaliza o desmatamento e legitima as ações do agronegócio.
O desmatamento é um dos principais marcos do avanço do agronegócio no Brasil, sendo parte fundamental do processo de Mudança de Uso da Terra (MUT). O MUT avança em conjunto com a grilagem de terras em áreas de fronteira agrícola, com a supressão de florestas nativas e implantação de áreas de pastagens ou de produção de commodities, como soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e silvicultura. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa (SEEG), o MUT e o setor agropecuário são os maiores emissores de gases do efeito estufa (GEE) do Brasil e, não coincidentemente, são predominantes em estados de fronteira agropecuária, como Mato Grosso, Pará, Maranhão, Tocantins, Rondônia e Bahia, abrangendo o “Arco do Desmatamento” e a região do “Matopiba” (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). O que evidencia a indissociabilidade entre os processos “pré-porteira” e “dentro da porteira”, no contraditório e sinuoso caminho do passar da boiada do agronegócio do Brasil.
Agronegócio avança poluindo da pré à pós-porteira
Segundo o Projeto Mapbiomas, entre 1985 a 2020, o Brasil perdeu 82 milhões (ha) de vegetação nativa no processo de MUT, com destaque para a Amazônia e o Cerrado. No caso da Amazônia, entre 1985 a 2023, o desmatamento foi impulsionado pelo avanço das áreas de pastagens de rebanhos bovinos, passando de aproximadamente 12 milhões de hectares para 59 milhões de hectares.
Nesse contexto, é importante mencionar que segundo o SEEG, no setor agropecuário, a fermentação entérica representa a maior contribuição de emissões de GEE do setor. A fermentação entérica é um processo digestivo que ocorre principalmente em ruminantes, como bovinos, liberando grandes quantidades de metano na atmosfera. Portanto, o agronegócio avança emitindo tanto dióxido de carbono (CO2) pelo desmatamento (pré-porteira) quanto metano (CH4) (dentro da porteira) pelo grande volume de rebanho bovino e, por fim, no processo de comercialização das carnes internacionalmente, com grandes cadeias dependentes de fontes de energia baseadas em combustíveis fósseis (CO2) (pós-porteira).
No caso do Cerrado, histórica zona de sacrifício imposta pelo agronegócio, o desmatamento tem avançado sobretudo para expansão das áreas destinadas à produção de commodities agrícolas de grãos, como soja e milho, com especial menção a região Centro-oeste, nos estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Todavia, recentemente, a região do Matopiba, considerada a última fronteira agrícola em áreas de Cerrado, tem ganhado destaque nacional e internacional nos estudos territoriais envolvendo a questão agrária e a questão ambiental.
O avanço do agronegócio no Matopiba se intensificou entre 2019 e 2022, sob o desgoverno Bolsonaro, acentuando os conflitos, a violência, a desterritorialização e diversos impactos territoriais nas comunidades e povos tradicionais, como a modificação de seus modos de vida. Nesse contexto, mesmo que entre 2023 e 2024, com o governo Lula III, o desmatamento no Brasil apresentou diminuição significativa em todos os biomas, com especial menção na região da Amazônia Legal, ainda é insuficiente, porque o agronegócio continua avançando e passando a boiada, senão sobre a floresta, na política ambiental.
Por fim, vale ressaltar que a chamada “mãe de todas as boiadas” não está sozinha. O PL da Devastação insere-se em um conjunto articulado de iniciativas legislativas que buscam flexibilizar normas e ampliar a destruição de territórios de comunidades e povos tradicionais em todas as regiões do Brasil. Trata-se de um projeto que caminha lado a lado com propostas que promovem a regularização da grilagem de terras, facilitam o uso indiscriminado de agrotóxicos, dificultam a realização da reforma agrária e inviabilizam a titulação de territórios de uso coletivo, como os de comunidades quilombolas e povos indígenas. Juntas, essas medidas compõem uma ofensiva coordenada contra direitos territoriais não somente dos povos dos campos, florestas e águas, mas representam uma afronta direta a toda a população brasileira e a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que garante tais direitos.
Por uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental comprometida
Tendo em vista o conjunto de dados e evidências abordados neste artigo e nas mobilizações dos movimentos populares, partidos políticos e organizações ambientalistas do Brasil e do mundo, cabe ao presidente Lula vetar completamente o PL 2159/2021 e impedir de uma vez por todas a passagem da “mãe de todas as boiadas”. Porque se a “mãe passar”, ela potencialmente abrirá caminho para outros retrocessos. O Brasil necessita de um Projeto de Lei que avance em sentido contrário aos interesses dos latifundiários, do agronegócio, da bancada ruralista e dos setores empresariais. Portanto, um projeto que freie o desmatamento em todos os biomas, que aumente a eficiência da fiscalização ambiental, que promova práticas agroecológicas e a justiça climática e, em última instância, que esteja alinhado aos interesses dos povos e comunidades dos campos, florestas, águas e cidades, sendo construída e aprovada em diálogo com a sociedade e não na “calada das madrugadas”.
O Brasil necessita de uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental que esteja verdadeiramente comprometida com o enfrentamento das mudanças climáticas e que promova ações efetivas nesse sentido ─ e não de uma legislação que reproduza contradições e aprofunde a lógica da destruição que são heranças do período colonial. A natureza não é flexível: flexibilizar leis ambientais significa, em última instância, comprometer de forma irreversível os ecossistemas, os territórios e as condições de vida das presentes e futuras gerações. Agora estamos no aguardo do veto do presidente Lula e da sustentação de seu discurso como liderança nos compromissos climáticos internacionais.
* Lorena Izá Pereira é licenciada, bacharel e doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente. Atualmente realiza pós-doutorado no projeto Transições Agroecológicas para Adaptação e Mitigação Climática (Atcam), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (processo n° 2024/18158-4). Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) e da Rede Brasileira de Pesquisas das Lutas por Espaços e Territórios (Rede Dataluta).
** Wuelliton Felipe Peres Lima é mestrando em Geografia na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) (processo n° 2024/09458-4). Pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Rede Brasileira de Pesquisas das Lutas por Espaços e Territórios (Rede Dataluta) e do projeto Transições Agroecológicas para Adaptação e Mitigação Climática (Atcam).
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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