Na América Latina, a vida das mulheres negras é marcada pela ancestralidade e pelo referencial militante de quem construiu a luta. Em países caribenhos forjados pela revolução esse debate fica ainda mais explícito.
É o que explica Marizabel Sifontes, presidente do Conselho Nacional para o Desenvolvimento das Comunidades Afrodescendentes da Venezuela (Conadec Afro). Nascida em Barlovento, região com uma das maiores populações negras na Venezuela, ela deixa claro quem foram seus mentores e as pessoas que guiaram o caminho da sua militância.
Por ser de uma zona que preserva as tradições de matriz africana, a discussão sobre raça esteve sempre presente em sua casa. Comida, música, danças e até o jeito de falar moldaram o estilo de Sifontes em torno de um debate racializado. Quando ela saiu para a universidade, ela teve a oportunidade de canalizar todo esse repertório em uma luta orientada para a questão de raça.
“Eu comecei a estudar e a ter contato com o professor Luiz Antonio Bigot, que lecionava na Faculdade de Educação, e era amigo próximo de Chucho García, que é uma das maiores referências para nós. Essas duas figuras serviram de guia dentro da Universidade Central da Venezuela, para mim e outros colegas que também vieram de Barlovento e concentraram seus esforços em estudar o negro no país. Minha consciência racial foi construída ali”, afirmou ao Brasil de Fato.
Formada em serviço social, se especializou em planejamento e passou a colocar o negro no centro do seu trabalho. O olhar para as comunidades afrodescendentes e do negro dentro da gestão pública passou a ser um foco para Sifontes e impulsionou não só a sua atuação profissional como também militante. Ela passa a integrar a Rede de Organizações Afro-venezuelanas e ocupa cargos de gestão até chegar ao Conadec Afro, um grupo ligado ao gabinete do governo venezuelano para debater essas questões.
Em Cuba essas referências também são evidentes. O país é marcado por transformações sociais que têm como base um governo revolucionário. Nesse contexto, Norma Rita Guillard Limonta construiu sua luta e formou suas referências. Fundadora do ramo cubano da Articulação Regional de Afrodescendentes da América Latina e do Caribe (2012), ela afirma que outras mulheres, Mariana Grajales Cuello e Vilma Espin, foram suas inspirações.
“Uma das principais figuras que nos inspiram é Mariana, a quem hoje reconhecemos como a mãe da pátria. É uma grande referência — ainda mais para mim, que sou de Santiago de Cuba, a mesma província de onde ela era. Foi lá que Mariana criou seus filhos. Vilma Espín, foi fundadora da Federação de Mulheres Cubanas e é também um exemplo de luta pelos direitos das mulheres. Ela abriu caminhos para todas nós”, disse ao Brasil de Fato.
Mariana Grajales Cuello foi uma patriota independentista cubana e mãe dos irmãos Maceo. Filha de pais de origem dominicana, nasceu em uma família de negros não retintos livre, o que lhe possibilitou acesso à educação desde cedo. A Revolução Haitiana — a primeira revolução vitoriosa de pessoas negras escravizadas — marcou profundamente sua família.
Reconhecer-se negra
Para Sifontes, o foco do debate sobre questões raciais na Venezuela é hoje voltado à questão da identidade e do reconhecimento enquanto ser negro na sociedade. Estética, identificação e autoestima são os grandes motes da discussão racial no país. Ela considera urgente superar a ideia de que a Venezuela é um país sem racismo e acredita que esse é o primeiro passo para avançar em outros sentidos.
“Nos anos 80, a autora Ligia Montanez, publicou um livro chamado Racismo Oculto em uma Sociedade Não Racista, que foi fundamental para essa interpretação. Reconhecer que existe racismo na sociedade venezuelana continua sendo um desafio. As pessoas começaram a denunciar a existência de racismo na sociedade venezuelana, porque, aqui, diferentemente de outros países onde o racismo é mais evidente e a segregação era mais visível como nos Estados Unidos, aqui sempre se difundiu a ideia de que, por ser um país mestiço, não temos racismo”, disse.
Esse conceito equivocado, que também é presente no Brasil, contamina todas as estruturas da sociedade e atravessa a questão de gênero. Mas, segundo Sifontes, a leitura de que as mulheres negras são alvo de uma exploração dupla já é conhecido debate no país. O foco, portanto, deve ser no sentido de “criar consciência” e reafirmar-se enquanto mulher negra.
O processo político venezuelano tem suas particularidades para promover esse tipo de debate. Desde que chegou ao poder em 1999, o ex-presidente Hugo Chávez reconfigurou a política e deu início a uma corrente chamada Revolução Bolivariana. O debate racial passou a estar em cena e o governo começou a falar de forma mais aberta sobre o racismo e a questão de gênero.
Sifontes afirma, no entanto, que isso ainda é um processo e que tem sido construído passo a passo no país no seio da revolução e que essa discussão ainda precisa avançar entre a militância que participa e apoia o governo bolivariano.
“Há tomadores de decisão dentro do governo que não têm consciência e não entendem que existe racismo na Venezuela. Portanto, quando políticas públicas são definidas, o componente racista está lá, oculto. O presidente insiste que existe racismo e apresenta como uma questão que todos nós temos que enfrentar, mas as pessoas não entendem e não aceitam isso. As pessoas negam o racismo pelas suas experiências pessoais”, disse.
Educação que transforma
Cuba tem um processo revolucionário mais antigo, que data de 1959. Isso transformou a vida de Norma Rita Guillard Limonta de maneira imediata. A vida e formação dela foram profundamente marcadas pela Campanha de Alfabetização de 1961.
Com apenas 14 anos, ela se juntou ao contingente de jovens que protagonizou uma das maiores epopeias da Revolução Cubana: erradicar o analfabetismo na ilha. Seu testemunho dessa experiência está registrado no documentário Maestras, da cineasta Catherine Murphy.
A partir de então, cursou o ensino superior ao lado de mulheres camponesas, que estariam presentes, de forma recorrente, nas lembranças mais queridas de sua trajetória.
Ela também entende que há um processo longo ainda a ser percorrido pela Revolução Cubana e pelo governo castrista para buscar superar as desigualdades de gênero e raça no país. Além disso, Rita acredita que há a construção de um reconhecimento do povo negro cubano enquanto um grupo com direitos e com uma história.
“Acho que o mais importante que aprendemos nessa luta pela mulher negra é que se trata de uma luta pelo autorreconhecimento. Reconhecemo-nos, conhecer nossa história e nossos ancestrais. É com essa força e esse legado que seguimos lutando. Sempre conscientes de que a união faz a força. Esse é o exemplo fundamental que podemos dar. Cuba realmente tem uma história incrível, com um legado de muita força — e é isso que nos permitiu mostrar que uma mulher negra pode se desenvolver e vencer”, afirmou.
A pesquisadora e editora cubana Caridad Tamayo Fernández também avalia que há um racismo enraizado na sociedade cubana e que a revolução até faz um esforço para tentar superá-lo, mas não consegue.
“A revolução tentou acabar com a discriminação e a desigualdade por meio de ações institucionais, mas o racismo já estava profundamente incorporado na genética social. Preciso citar Zuleica Romay quando diz: ‘Eu não perco a oportunidade de discordar dos companheiros que dizem que em Cuba não há racismo estrutural. O racismo é estrutural ou não é’. Ela explica que os fenômenos estruturais são extremamente difíceis de serem combatidos se não houver políticas que considerem as dimensões materiais, espirituais e simbólicas do problema”, disse.
Haiti e as bases do feminismo negro caribenho
O Haiti é considerado o país que fundamentou o debate do racismo no Caribe. A Revolução Haitiana, concluída em 1804, fez dele o primeiro país independente da América Latina e o primeiro Estado fundado por pessoas negras libertas da escravidão.
Para Colette Lespinasse, educadora em Direitos Humanos, militante feminista, defensora dos direitos da mulher e dos migrantes, esse traço de luta forjou, não apenas as haitianas, como as mulheres caribenhas como um todo. Por essa razão, elas acabam por preservar uma característica em comum: uma forte ligação com África e a coragem para garantir a sobrevivência de seus países.
“Em muitos lugares onde tive a oportunidade de conviver com mulheres e organizações feministas, como no Haiti, vejo como, especialmente nos países que enfrentam a pobreza, são as mulheres que se esforçam para alimentar a família, educar os filhos, trabalhar no campo ou nas fábricas”, disse.
Outro ponto fundamental na avaliação da educadora é que essas mulheres são também responsáveis pela preservação e transmissão dos elementos da cultura.
“Se há elementos da cultura haitiana que provêm da África e que se encontram até em países onde há muitos imigrantes haitianos, como os Estados Unidos ou a República Dominicana, é graças às mulheres que mantêm em grande parte essa cultura através da culinária ou na educação dos filhos. A transmissão de valores recai em grande parte sobre os ombros das mulheres. Acredito que seja o mesmo em outros países da região”, disse.
Lespinasse lamenta que não haja um reconhecimento da contribuição feitas por essas mulheres para a construção de uma sociedade livre e que pensasse no fim da subjugação.
Em um país com raízes formadas em torno da libertação e da luta revolucionária pelo fim da opressão, há ainda reivindicações muito básicas das mulheres negras, como o direito de viver em um espaço sem violência. Mesmo sendo uma pauta antiga no Haiti, ela afirma que as haitianas ainda são frequentemente vítimas de violência e os grupos armados usam o estupro como arma de guerra.
“As mulheres lutavam para não serem espancadas por seus companheiros, assediadas ou estupradas. É um tema sempre presente”, afirmou.
Lespinasse também destaca que, na luta das mulheres haitianas, há outros dois temas. O primeiro é o direito à saúde sexual e reprodutiva. Ela relata que muitas delas são obrigadas a parir em casa, em condições difíceis e expostas a diversos riscos. O Haiti tem a maior taxa de mortalidade materna no Hemisfério Ocidental, com 529 mortes a cada 100 mil nascimentos segundo o Médicos Sem Fronteiras.
O outro ponto trazido pela educadora é o debate interno entre as mulheres haitianas sobre a carga social do trabalho das mulheres.
“Entre as classes mais pobres, são as mulheres que enfrentam mais dificuldades: 40% das famílias são monoparentais, ou seja, a mulher é a única responsável pelos cuidados da família. Ela precisa trabalhar para alimentar todo o mundo e, ao mesmo tempo, cuidar da educação dos filhos. E os homens estão passeando. Eles fazem filhos, mas não cuidam deles”, criticou.
“Portanto, a reivindicação é que os pais assumam suas responsabilidades, mas também que a sociedade como um todo, o próprio Estado, se organizem para diminuir a carga que pesa sobre os ombros das mulheres, para que elas tenham tempo e meios para se desenvolver”, concluiu.
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