PL da Devastação: de volta ao período da ditadura militar

O famigerado PL da Devastação, PL 2.159/2021, votado na calada da noite, na madrugada, de forma semipresencial, é mais um capítulo vergonhoso desse Congresso Nacional, onde a maioria legisla em causa própria, a favor de seus interesses financeiros pessoais e privados, de bancadas financiadas pelos degradadores, em destaque pelo agronegócio, mineração, especulação imobiliária e empresas privadas de água e energia. Como sempre, um exemplo desse Congresso é o deputado federal, representante do Litoral Norte do RS, Alceu Moreira (MDB), um dos líderes da bancada ruralista, com histórico de atuação contra o meio ambiente, os povos indígenas e quilombolas, com agenda anti-povo, contra os direitos sociais e sem surpresa, votou a favor do PL da Devastação.

O PL da Devastação é sem dúvida o maior retrocesso socioambiental dos últimos 40 anos, em pleno ano de COP30 no Brasil, desde a consolidação da legislação ambiental brasileira durante a redemocratização, após o período sombrio de 21 anos da ditadura civil-empresarial-militar brasileira (1964/1985). Nos joga de volta ao passado, em plena ditadura militar, quando valia tudo: poluir, desmatar e degradar sem limites. Aliás, era incentivado.

O vale tudo do regime militar nos deixou marcas profundas socioambientais, marcado pelo slogan “Venham poluir no Brasil”, com seu modelo desenvolvimentista, principalmente com suas “obras faraônicas” entre as quais se destacam a rodovia Transamazônica (BR-230), as hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Itaipu (a maior do mundo), a ponte Rio-Niterói, as usinas nucleares de Angra dos Reis, a Ferrovia do Aço e o projeto de minério de ferro de Carajás. Todas sem nenhum licenciamento, poderíamos citar as consequências ambientais e sociais de cada uma, entretanto não é o objetivo do texto, cito somente a hidrelétrica de Itaipu, que teve mais de 100 operários mortos e 43 mil acidentes na construção, além da violação de direitos humanos, principalmente das populações mais vulnerabilizadas, desalojou e afetou dezenas milhares de famílias, indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores. Recentemente, em 2023, a estatal ainda foi condenada por indenizar e reparar as comunidades atingidas.

A década de 1980 é de consolidação das leis ambientais, com a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) em 1981, o Licenciamento Ambiental com a Resolução nº 1 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em 1986, onde que surge o instrumento necessário para grandes empreendimentos com impactos ambientais e sociais, a necessidade de elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) para grandes empreendimentos. É quando, pela primeira vez, a questão ambiental entra na Constituição no Brasil, em 1988, a Constituição Cidadã, com o artigo 225 que estabelece o direito de todos os brasileiros a “um ambiente ecologicamente equilibrado como um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Este artigo impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

PL inconstitucional

Por isso, o PL da Devastação é inconstitucional. Porque ataca de frente o artigo 225. Entretanto, vai além, pois acaba na prática com o Conama e suas resoluções, já que joga para os estados e municípios decidirem sobre os temas (“guerra ambiental” de quem flexibiliza mais), altera e modifica a atuação dos órgãos de proteção ambiental, indígena, quilombola e patrimônio histórico e arqueológico como os sambaquis do Litoral Norte, respectivamente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Fundação Cultural Palmares e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Assim como as propostas absurdas e inconstitucionais, intituladas de autolicenciamento (Licença por Adesão e Compromisso (LAC)), já tentado no RS pelo governo de Eduardo Leite/Gabrielzinho (PSD/MDB), mas que foi derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), e a  Licença Especial (LAE), para empreendimentos considerados “estratégicos” pelo Conselho de Governo.

Os impactos do PL da Devastação serão sentidos profundamente nos seis biomas brasileiros: Mata Atlântica, Pampa, Pantanal, Cerrado, Caatinga e Amazônia, e de quem vive nos seus territórios. Porque, acima de tudo, é uma questão direta e profundamente social. Acelerando a destruição dos mesmos e suas consequências irreparáveis e irreversíveis de não retorno, que serão sentidos não somente pela biodiversidade, mas também, e principalmente pelas populações, pois afetam diretamente os bens comuns como a água, o solo, o ar e o clima. Assim como serviços ecossistêmicos fundamentais para o bem-estar e a qualidade de vida, da ampla maioria do povo brasileiro, afetando com maior intensidade os mais vulneráveis, de forma interseccional, classe, gênero e raça, aumentando ainda mais o racismo ambiental nos territórios brasileiros.

Disputas no Litoral Norte do RS

O território do Litoral Norte, que está em disputa, entre a defesa de seus ecossistemas, a sua biodiversidade, os seus modos de vida e a sua existência, suas belezas naturais e dos patrimônios histórico, arqueológico, natural e cultural, contra o avanço desenfreado do capital, expresso na especulação imobiliária, de um lado horizontaliza em intermináveis condomínios fechados, muros cercados que relembram “feudos modernos”, com destruição de paisagens, Áreas de Preservação Permanente como as nascentes e as dunas e com aprofundamento da segregação social e racial. Do outro lado verticaliza em espigões de concreto nas beiras das praias, que levam sombra à beira-mar, de Torres à Capão da Canoa, que querem se expandir para outras praias como Xangri-lá e Tramandaí.

Há também projetos de expansão que afrontam toda a essência litorânea, como o porto de Arroio do Sal, que tem desdobramentos extremamente impactantes adicionados como uma ponte sobre a Lagoa da Itapeva e a duplicação da rodovia Rota do Sol, localizada em meio à Mata Atlântica e seus ecossistemas únicos e ameaçados; a nova ponte entre Tramandaí/Imbé que ameaça a pesca cooperativa da tainha entre os pescadores artesanais e os botos; as usinas eólicas offshores e as linhas de transmissão de alta tensão que são verdadeiras veias abertas no bioma Mata Atlântica, inclusive em Unidades de Conservação, como no caso da Área de Proteção Ambiental (APA) Morro de Osório, que já possui cinco linhas em seu território. Um caso emblemático que antecipa esta lógica é a construção da Estação de Tratamento de Esgoto de Osório, com inúmeras irregularidades,  que despeja os efluentes na Lagoa dos Barros, entre Osório e Santo Antônio da Patrulha.

Atualmente o principal conflito socioambiental no Litoral Norte é o emissário de esgoto da empresa privatizada Corsan/Aegea, de Capão da Canoa e Xangri-lá para a Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí, com ponto de despejo em Osório e que atinge diretamente os municípios e as populações de Imbé e Tramandaí, obra paralisada devido à mobilização social e organizada por diversos coletivos como o Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte (MOVLN).

Abrindo a porteira de vez para os setores degradadores

Se atualmente, os interesses do capital sobre o território, prevalecem e avançam, os interesses econômicos ditam as regras, ilegalmente ou legalmente, frente à fragilidade, falta de fiscalização e desmonte dos órgãos ambientais nas três esferas, federal, estadual e municipal, sendo que este último se resume a quase um órgão cartorial, frente aos interesses políticos e econômicos das elites locais. Entretanto, com lutas, resistências e mobilizações, principalmente respaldadas pelos mecanismos de proteção que estão na legislação ambiental vigente, o território está em disputa, entre os interesses privados contra os da coletividade. Com o PL da Devastação, a boiada passa, e toda a proteção e mecanismos serão extintos, abrindo a porteira de vez para os setores degradadores.  

Obras relacionadas à infraestrutura como rodovias e pontes, ao saneamento básico como o emissário de esgoto e a Estações de Tratamento de Esgoto e Água não irão mais precisar de licenciamento, assim como aquelas que irão passar em áreas não demarcadas, as Terras Indígenas como as retomadas guaranis de Maquiné e Terra de Areia, xokleng em São Francisco de Paula, e o quilombo Morro Alto, entre Osório e Maquiné. Não haverá mais consulta prévia a estas comunidades tradicionais, quando atingidas por empreendimentos que tendem a alterar seus hábitos e modos de vida. Essas consultas são obrigatórias pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

O PL da Devastação viola normas nacionais e internacionais. Assim como reduz a proteção às obras que irão passar na Mata Atlântica, desconsiderando a Lei 11.428 (2006), que protege estágios avançados da floresta, como a mata primária, atualmente imune a cortes. O pouco que temos preservado ainda desse bioma, que nos fornece água, clima e toda a sua biodiversidade, vai estar ameaçado, principalmente pelas linhas de transmissão de energia, que levam energia para locais distantes da sua produção, das novas usinas eólicas propostas em terra e offshore que poderão passar, inclusive em Unidades de Conservação, abrindo ainda mais veias na Mata Atlântica, rasgando os resquícios de matas preservados ainda existentes.

Portanto, precisamos nos mobilizar e pressionar nos próximos dias para o veto integral do presidente Lula, com atos e mobilizações de rua marcadas para o próximo final de semana dos dias 2 e 3 agosto e nas redes sociais, com vídeos e postagens em conjunto a todo o movimento socioambiental nacional e organizações contrárias a este retrocesso de décadas, que nos coloca de volta ao período da ditadura militar, onde valia tudo. Não podemos aceitar tamanho retrocesso histórico e civilizatório, em pleno ano de COP30 e no contexto da crise climática, com eventos climáticos extremos cada vez mais intensos e frequentes.

Situação dos rios na Mata Atlântica éÉ por nós, pela Mata Atlântica, pelas águas, pelo Litoral Norte e toda a sua sociobiodiversidade, habitantes desse território, que resistem e lutam para defendê-lo, em defesa da vida, dos seus patrimônios históricos e naturais, materiais e imateriais. É pelo Brasil e suas próximas gerações.

* Eduardo Luís Ruppenthal, professor da rede pública estadual, biólogo e doutorando em Educação (UERGS). Membro do Coletivo Alicerce e do MOVLN.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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