‘Foi um descaso do estado’, diz irmã de vítima de feminicídio morta mesmo com medida protetiva no RS


RS lidera ranking de vítimas de feminicídio com medidas protetivas ativas
A gerente comercial Luana Mateus, 28 anos, largou a vida que levava Austrália para ficar próxima da família após uma tragédia: os feminicídios da mãe, Zilma Damiani Mateus, 68 anos, e da irmã, Juliana Mateus, 40 anos, assassinadas pelo ex de Juliana.
O caso, ocorrido em maio, em Três Coroas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, expôs a fragilidade da rede de proteção às mulheres no Rio Grande do Sul — estado que lidera o ranking de feminicídios mesmo com medida protetiva ativa, conforme os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Veja mais abaixo.
Juliana havia pedido uma medida protetiva contra Ederson Jesus da Silveira três dias antes de ser assassinada. A medida foi encaminhada pela delegacia e chegou a ser determinada pelo Judiciário, mas o agressor nunca foi intimado. Ele foi preso ao dar entrada em um hospital, no dia ao crime.
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No dia 19 de maio, ele invadiu a casa onde as vítimas moravam e desferiu diversas facadas, segundo o boletim de ocorrência. Juliana morreu no local. Zilma chegou a ser hospitalizada, mas faleceu dias depois.
“Para mim é muito descaso do estado, sabe, parece que as vidas das mulheres não importa. Não fizeram alguma coisa mais assertiva, patrulha, acompanhamento, nada”, criticou.
A própria Juliana havia relatado sentir medo do ex-companheiro, que demonstrava comportamento violento, usava drogas e a ameaçava de morte.
Sobre o caso da Juliana, o Judiciário informou que, apesar de a medida ter sido determinada, o assassino ainda não tinha sido intimado e, por isso, a medida não era considerada ativa.
À época do crime, Luana morava na Austrália, onde estudava e trabalhava. Voltou às pressas para o Brasil e também para assumir a guarda da sobrinha, uma menina de cinco anos que presenciou o crime. Ela não pretende voltar, como relatou em entrevista ao Jornal do Almoço, da RBS TV.
“Hoje eu topei da entrevista porque eu queria que se as mulheres estivessem ouvindo isso, que elas procurem alguém, que elas procurem ajuda, que elas não se silenciem por alguém, que elas consigam procurar o quanto antes que isso aconteça, que o Estado consiga enxergar que as mulheres precisam ser ouvidas, que as mulheres precisam de atenção e que isso tá acontecendo muito”.
Luana conta que a irmã conheceu o ex-companheiro pela internet. Após poucos meses, ele foi morar com Juliana, a filha e a mãe. No início, era carinhoso. Mas, aos poucos, o comportamento mudou: ele passou a monitorar o celular de Juliana, impedir que ela saísse sozinha e, segundo a família, tentou instalar câmeras na casa.
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RS lidera ranking de feminicídios com medida protetiva ativa
O caso da Juliana não é isolado. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, o Rio Grande do Sul lidera o ranking nacional de feminicídios cometidos mesmo com medida protetiva de urgência ativa. Em 2024, foram 14 mulheres assassinadas nessas condições — 27% dos casos registrados no país inteiro. No ano anterior, foram 22 no estado.
Pela primeira vez, o levantamento incluiu dados sobre descumprimentos de medidas protetivas que não resultaram em feminicídio, também liderado pelo RS. Foram quase 12 mil registros de descumprimento em 2024 no Estado, o equivalente a 106,1 casos a cada 100 mil mulheres — mais que o dobro da média nacional.
“A medida protetiva de urgência tem sido a principal aposta estatal no enfrentamento da violência contra a mulher no sentido de tentar prevenir que uma violência se agrave, mas o que a gente vê esse ano é que a medida protetiva não dá conta de todos os casos. O que os dados nos mostram é uma posição bastante negativa do Rio Grande do Sul nesse sentido”, afirma a pesquisadora Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Estado contesta pesquisa
A diretora do Departamento de Grupos Vulneráveis da Polícia Civil, delegada Tatiana Bastos, contesta a leitura isolada dos números. Ela diz que o Rio Grande do Sul historicamente concede muitas medidas — e que esse volume pode influenciar os índices de descumprimento.
“Se nós temos essas 51 mil medidas protetiva e, 14 mulheres, segundo o anuário, que acabaram sendo vítimas de feminicídio, mesmo estando com a medida protetiva válida, a gente ainda assim salvou mais de 50 mil vidas. Então, a perspectiva muda o nosso cenário”, argumenta.
A juíza-corregedora do Tribunal de Justiça do RS, Taís Culau de Barros, alega que o estado tem tradição de determinar um alto número de medidas, o que, consequentemente, faz com que tenha um número maior de descumprimentos. Para ela, o sistema tem buscado alternativas como tornozeleiras eletrônicas e monitoramento de vítimas e agressores.
“Obviamente nós vimos com muita preocupação os dados. Toda mulher que tem medida protetiva tem que estar segura. Mas o contrário é o que tem que ser enfatizado, as inúmeras mulheres que foram salvas por ter medida protetiva. Nós temos no estado, até o momento, mais de 20 mil mulheres com medida protetiva só esse ano. E poucos casos de feminicídio, claro que deveria existir nenhum. Mas é importante a gente continuar enfatizando que as mulheres têm que buscar ajuda, têm que pedir a medida protetiva e ir até uma delegacia”, reforçou.
Já a Brigada Militar informou, em nota, que prendeu 196 homens por descumprimento de medida no ano passado. E que, das mulheres acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha, cinco foram vítimas de feminicídio. A BM disse que 500 policiais foram qualificados neste ano para atuar na proteção às mulheres, mas não respondeu se o trabalho será ampliado, nem quando.
O que diz a Brigada Militar
O Rio Grande do Sul apresentou uma redução de mais de 10% nos feminicídios entre 2023 e 2024, apresentando-se como a 13ª menor taxa no ano de 2024. Ainda, importante observar outros números apresentados, como Medidas Protetivas de Urgência (MPU) distribuídas e concedidas pelos Tribunais de Justiça, no contexto da Lei Maria da Penha. Nestes casos, o Estado aparece em segundo lugar nacional, somente atrás de São Paulo, sendo o terceiro em MPU emitidas por 100 mil mulheres, e o segundo em registro de descumprimentos, muitos dos quais com resposta rápida, uma vez que no ano de 2024 foram realizadas 196 prisões pela Brigada Militar por descumprimento de MPU.
Quanto às ações da Brigada Militar, a Patrulha Maria da Penha realiza o acompanhamento das MPUs recebidas do Poder Judiciário, de modo que dos casos acompanhados pela Brigada Militar, somente cinco foram vítimas de feminicídio, no ano de 2024.
Destaca-se que a atuação na prevenção de violência doméstica ocorre em todo o RS, com a condução de 9.601 agressores à delegacia pela Brigada Militar, somente em 2024. Além disso, a Brigada Militar constantemente qualifica o efetivo para o atendimento de ocorrências, no contexto da Lei Maria da Penha, e para o acompanhamento de medidas protetivas. Somente no ano de 2025, já foram qualificados mais de 500 policiais militares.
Por fim, ressalta-se que dos 27 entes federativos listados no Anuário de Segurança Pública, somente 12 forneceram informações completas dos anos de 2023 e 2024, ou seja, há uma limitação referente às conclusões a serem obtidas, uma vez que fundadas em uma base de dados aparentemente incompleta em alguns dados.
Juliana, vítima de feminicídio, e a irmã, Luana
Reprodução/RBS TV
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