Em 20 anos, proteção aos defensores de direitos humanos acumula mais ‘retrocessos do que avanços’

Entre 2014 e 2025, o número de pedidos de inclusão no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) cresceu cerca de 1.300%, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Embora o governo federal relacione o aumento ao fortalecimento da política, o pesquisador Antonio Neto, da plataforma Justiça Global, avalia que foram observados “mais retrocessos e desafios do que avanços” na proteção aos defensores ao longo das duas últimas décadas.

“Todo ano, o comitê escreve documentos de monitoramento, avaliação e recomendação, e é importante dizer que nesses 20 anos, as recomendações basicamente se repetem”, afirmou em entrevista ao Brasil de Fato.

Um exemplo das lacunas apontadas no documento é o tamanho das equipes estaduais, que contam com apenas sete a nove profissionais. O número é considerado insuficiente para atender à demanda, sobretudo em estados com grande extensão territorial ou elevada diversidade demográfica. É o caso da Bahia, que, segundo dados de julho deste ano do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, concentra 146 pessoas sob proteção.

Outro entrave é que o programa ainda não foi convertido em texto legislativo, o que o torna vulnerável às mudanças de governo e compromete sua continuidade. “Desde o início, a gente reivindica um marco legal garantido em lei, porque o programa depende de decretos presidenciais para funcionar como uma política pública. Mas os decretos são um instrumento frágil, porque depende necessariamente da boa vontade dos governos de plantão. É uma das lacunas”, afirma Antonio Neto.

A Justiça Global integra o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), que lançou, nesta terça-feira (5), um dossiê por ocasião dos 20 anos da organização e das políticas para a proteção de defensores, completados neste ano. 

O grupo nasceu em 2004 com o objetivo de articular a sociedade civil em torno da proteção de defensoras e defensores de direitos humanos e acompanhar a implementação da política pública de proteção. Três anos depois, em 2007, foi criada a Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos por meio de um decreto. Desde 2005, no entanto, já havia previsão orçamentária para tratar do assunto. 

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: Qual é a análise desses 20 anos de Programa de Proteção aos DDHs? Houve mais avanços do que retrocesso ou o contrário?

Antonio Neto: O comitê faz uma avaliação do programa anualmente e, ao longo desses anos, identifica muito mais retrocessos e desafios ou dificuldades do que avanços. Todo ano, o comitê escreve documentos de monitoramento, avaliação e recomendação, e nesses 20 anos, as recomendações basicamente se repetem. 

Por exemplo, desde o início, a gente reivindica um marco legal garantido em lei, porque o programa depende de decretos presidenciais para funcionar como uma política pública. Mas os decretos são um instrumento frágil, porque depende necessariamente da boa vontade dos governos de plantão. É uma das lacunas.

Outra questão é que a gente historicamente anos serve como um ponto de monitoramento e de recomendação. Mas o programa ainda não tem uma parametrização das ações, dos processos feitos e das avaliações de riscos e, a partir disso, a construção das ações de proteção. 

E como você analisa a situação dos próprios defensores de direitos humanos nesses anos?

A gente identifica, ainda que com diferenças entre um ano e outro, um agravamento da situação de violências e violações pelas quais os defensores e as defensoras vêm passando nesses últimos anos. Os últimos anos vêm mostrando a fragilidade e o recrudescimento das situações de violações e violência contra defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil. 

O Brasil, junto com a Colômbia e o México, são os países mais perigosos do mundo para atuação de pessoas defensoras e defensores de direitos humanos. Existem perigos e riscos inerentes à atuação de pessoas que lutam por seus direitos, e o Brasil tem se transformado cada vez mais num país perigoso, de acordo com os dados das pesquisas, tanto de organizações nacionais quanto internacionais.

Na medida em que o Brasil aumenta a violência contra defensoras e defensores, é preciso também um mecanismo de proteção, garantindo a responsabilidade do Estado no desenvolvimento de ações de proteção que possam dar a essas pessoas a possibilidade de seguirem lutando de maneira mais protegida e segura. 

Segundo o dossiê, a maior parte do orçamento do programa está comprometida com despesas de gestão. Há alguma estimativa de qual seria um valor adequado para garantir seu funcionamento pleno?

A gente não tem um estudo específico de orçamento, de quanto a gente precisaria para o funcionamento do programa. O que a gente entende é que o orçamento hoje é insuficiente para atuação e efetivação das ações de proteção a defensoras e defensores. 

A maior parte do orçamento é voltado para o pagamento de pessoal das equipes que vão executar o programa nos estados. Mas o Estado deve também separar um orçamento para a construção e efetivação das ações de proteção como possibilidade concreta de fazer com que essas pessoas possam continuar a lutar no seus territórios. 

A gente entende que a política pública de proteção à defesa dos direitos humanos precisa aprofundar a discussão sobre a execução, porque o modelo atual de triangulação entre governo federal, estadual e organização da sociedade civil tem trazido desafios importantes para o programa. 

A gente responsabiliza as organizações da sociedade civil pela execução cotidiana do programa de uma política pública que, na verdade, é de responsabilidade do Estado. Os órgãos do Estado, na medida em que as entidades da sociedade civil executam o programa, têm dificuldade em dar respostas concretas a essas demandas. 

Por mais que as organizações da sociedade civil façam essa articulação, os órgãos do Estado não conseguem enfrentar as causas estruturais que originam as situações de violência. Essa é a principal forma de proteger uma defensora e um defensor: resolver a situação estrutural que origina a situação de violência. Então o orçamento e qualquer recurso envolvido para o programa de proteção de defensores também deve envolver a resolução da questão estrutural. 

As equipes estaduais contam, em média, com sete a nove profissionais. É um número considerado baixo? 

Em razão do orçamento limitado, as equipes estaduais, embora mobilizem a maior parte dos recursos disponíveis, ainda operam com capacidade muito abaixo do necessário para implementar o programa de forma eficaz em seus respectivos estados.

Imagina nove profissionais para dar conta da quantidade de territórios e de violações que acontecem na Bahia, que é um dos estados com mais defensores e defensoras incluídos no programa [atrás apenas do Pará]. Uma equipe de sete a nove pessoas não dá conta de acompanhar diretamente o programa no estado da Bahia. 

Uma coisa importante é que esse acompanhamento deve ser interdisciplinar de fato, envolvendo profissionais do direito, psicologia, serviço social, ciências sociais e outras áreas também importantes para compor esse quadro de profissionais que possam contribuir no desenvolvimento.

Apesar do aumento de pedidos de inclusão de defensores no programa nos últimos 10 anos, conforme dados do Ministério dos Direitos Humanos, entre 2019 e 2024, houve uma tendência de queda no número de casos acompanhados anualmente de aproximadamente 950 para 500 casos. Por quê?

De fato, essa tem sido uma tendência. Por um lado, entre 2019 e 2022, tivemos um programa tocado por um governo de extrema direita [do ex-presidente Jair Bolsonaro]. Durante esse período, muitas pessoas pensaram duas vezes em acionar o programa, porque precisam compartilhar uma quantidade de informações grande sobre seus casos de violência e violações que poderiam lhes colocar em situação de vulnerabilidade e em ameaça. 

Era um programa dentro de um governo de extrema direita que estava, na grande maioria das vezes, aliado aos violadores e às pessoas que violentavam as defensoras e defensores naquele período. Então a gente viu uma tendência de diminuição nos anos do governo Bolsonaro. 

Além disso, tem as fragilidades do programa que ajudam a descredibilizá-lo. Na medida em que não há uma resposta eficaz, há uma desconfiança. Então, a gente acha que a tendência de queda tem a ver também com a falta de eficiência do Estado na construção das ações de proteção. 

Mas também deve ter uma certa subnotificação, porque o próprio programa tem dificuldades no processo de elaboração e monitoramento de dados relacionados às violações a defensoras e defensores de direitos humanos. Sempre que a gente precisa ter algum tipo de dado é muito difícil acessar dados sistematizados sobre as defensoras, sobre quais são suas lutas e sobre o que está acontecendo.

No geral, o que deve ser feito para aprimorar o PPDDH?

Junto com as várias outras organizações fazem parte do comitê, também estivemos envolvidos diretamente na construção do Grupo de Trabalho Técnico (GTT) Sales Pimenta, responsável pela elaboração do Plano Nacional de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, ao longo do governo Lula. Nesse plano, as organizações da sociedade civil conseguiram sistematizar as ações que devem ser feitas para o programa ser efetivado na prática.

Nesse primeiro momento, é importante que o plano seja transformado em lei, que é o que o governo atual está dizendo que vai fazer. Proteger as defensoras e defensores necessariamente passa pelo fortalecimento do programa. Dentro do plano, tem várias ações práticas, incluindo melhor orçamento, parametrização e aprofundamento metodológico sobre como efetivar a proteção. 

O plano também entende a proteção como algo coletivo, superando a ideia da individualização da proteção como uma ação eficaz. A coletivização das ações de proteção são mais eficazes quando a gente está falando de defensores e defensoras que na grande maioria não estão lutando a sós, mas com suas coletividades, comunidades e territórios. Essa é uma outra questão importante para se levar em consideração. 

Também é importante a efetivação de um orçamento maior para a construção da política pública de proteção. Proteger defensores e defensoras é uma política pública cara, e o governo precisa encarar a ampliação de orçamento de uma maneira mais séria. 

Além disso, a gente identifica de maneira geral que a triangulação entre governo federal, estadual e entidades da sociedade civil não é a melhor forma de executar a política pública. A gente não pode responsabilizar as organizações da sociedade civil na execução de políticas públicas, que é dever do Estado. Ao mesmo tempo, é necessário garantir a atuação da sociedade civil dentro do programa, que é uma questão pela qual a gente sempre lutou: a participação popular e social na construção das ações de proteção. O Estado é responsável pela construção das ações de proteção, mas ela não pode ser feita somente pelo Estado. 

Raio-x do programa

Em 2005, o orçamento para a proteção de defensores de direitos humanos foi de R$ 1 milhão. Em 2024, a execução orçamentária já foi de R$ 13 milhões. A despeito do aumento orçamentário ao longo dos anos, o dossiê do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos considera que o montante de recursos destinados ao PPDDH é “inadequado” e de baixa execução. 

Em 2018, cerca de R$ 400 mil foram executados de uma dotação inicial de R$ 15 milhões. Em 2023, dos R$ 18,9 milhões reservados para o programa, apenas R$ 8,3 milhões foram aplicados no exercício corrente, com a execução chegando a R$ 13,8 milhões ao considerar os restos a pagar.

O documento também aponta que a maior parte do orçamento é destinada a despesas administrativas, como a manutenção das equipes técnicas responsáveis pela operação do programa. No Ceará, por exemplo, 74,76% do orçamento é voltado para gestão e manutenção da equipe técnica, enquanto somente 8,75% é direcionado ao atendimento e à proteção direta de defensores e defensoras de direitos humanos.

Paralelamente, dados do Ministério dos Direitos Humanos mostram que 1.414 pessoas vivem sob medidas de proteção por conta de ameaças relacionadas à defesa dos direitos humanos em todo o Brasil. Do total, 80% são lideranças que atuam em causas ligadas ao meio ambiente, à terra e ao território. Também estão incluídas pessoas envolvidas no combate ao racismo, à LGBTfobia e a outras formas de violação de direitos.

Entre as pessoas protegidas estão indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, integrantes de religiões de matriz africana, comunidades de fundos e fechos de pasto, localizadas no norte e oeste da Bahia, extrativistas e geraizeiros. Os perfis dos principais ameaçadores variam conforme a região, mas no geral são fazendeiros, garimpeiros, extrativistas ilegais, empresas, madeireiros, agentes de segurança pública e grileiros.

A maior concentração de pessoas protegidas está nos estados do Nordeste, com 532 casos, seguida pela região Norte, com 383. O Sudeste contabiliza 292 pessoas sob proteção, o Centro-Oeste, 106, e o Sul, 101. Considerando as unidades federativas, o Pará lidera com 162 casos, seguido pela Bahia (146), Maranhão (132), Minas Gerais (122), Ceará (117) e Amazonas (108).

Outro lado

O Brasil de Fato procurou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para comentar os dados do dossiê. Não houve resposta até o momento. O espaço será atualizado assim que houver um retorno.

O post Em 20 anos, proteção aos defensores de direitos humanos acumula mais ‘retrocessos do que avanços’ apareceu primeiro em Brasil de Fato.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.