A espera por justiça da família e dos amigos de Débora Moraes, assassinada aos 30 anos, em setembro de 2022, chegou ao fim nesta quinta-feira (7), dia que a Lei Maria da Penha completou 19 anos. O réu, seu ex-marido Felipe Faustino, foi sentenciado a uma pena de 29 anos de prisão, em regime inicial fechado, pelos crimes de homicídio qualificado por motivo torpe, meio cruel (asfixia), recurso que dificultou a defesa da vítima e por razões da condição de sexo feminino (feminicídio). A sentença foi proferida pela juíza Cristiane Busatto Zardo, ao fim do júri que durou quase 10 horas. O júri aconteceu na 4ª Vara do Júri de Porto Alegre, especializada em feminicídios.
“Esse foi um dia muito esperado. Depois de três anos do ocorrido, a gente aguardava muito para que acontecesse isso e, graças a Deus, aconteceu. Terminou da melhor forma, a forma mais justa, por tudo que ele fez”, avaliou a irmã da vítima, Daniele de Moraes Lemos Alves, após a sentença proferida no fim do júri. “Minha filha queria viver e viver em paz!”, disse, emocionada, a mãe de Débora, Katia de Moraes Lemos, primeira testemunha da acusação durante o julgamento.
Moraes era coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Porto Alegre, mãe e ativista que lutava pelo reassentamento de famílias atingidas pela Barragem da Lomba do Sabão, na vila dos Herdeiros. Foi assassinada pelo ex-companheiro Felipe Faustino, na manhã de 12 de setembro de 2022, uma segunda-feira, em casa, deixando sua filha de seis anos. De acordo com a denúncia do Ministério Público, o acusado enforcou Débora com um fio elétrico, motivado pela não aceitação do fim do relacionamento de 12 anos.

No júri, a mãe contou que Débora era ameaçada por Felipe desde 2017, sofrendo os mais diversos tipos de agressão: física, verbal, psicológica e patrimonial, sendo algumas, inclusive, na presença da filha. “Ele controlava tudo: os horários, as roupas, as relações e dizia que se ela não fosse dele, não seria de mais ninguém”, relatou.
Lemos lembrou também dos sonhos da filha e o quanto se empenhava para realizá-los. “Minha filha era trabalhadora e estudava, ela queria se formar, ser alguém na vida. Ela teve a Eduarda (primeira filha de um outro relacionamento que faleceu em um acidente de carro) bem jovem. Era linda, maravilhosa, guerreira, familiar”, contou a mãe.
A reviravolta: da negação à confissão
Por causa da alegação por parte do feminicida de que Débora teria cometido suicídio, a justiça determinou em outubro de 2023 que ele seria julgado por júri popular, reconhecendo a materialidade do crime e rejeitando a tese de suicídio. O júri desta quinta-feira iniciou às 10h45min e foi concluído às 19h50min, contou com sete jurados – seis mulheres e um homem – e seguiu com os depoimentos de outras quatro testemunhas da acusação, já que a defesa renunciou o direito de ouvir as testemunhas que havia indicado.

Além da mãe, o namorado e o irmão de Débora, testemunharam o policial militar Nicolas Batista e a policial civil Nina Orcy, da Delegacia da Mulher, pela acusação. Os dois policiais relataram como encontraram a cena do crime ao chegar no endereço indicado, a revolta dos vizinhos e da comunidade perante o ocorrido, os indícios de que o crime teria sido premeditado e os diversos indicativos da perícia que indeferiram a tese de suicídio alegada na época pelo réu.
Com a cabeça baixa durante todo o júri, no momento do depoimento, Felipe Faustino mudou sua versão sobre o crime e confessou o assassinato. Ele narrou que os dois começaram a brigar e depois alegou que “apagou” e não lembra do que aconteceu naquela manhã. “Quando me dei conta eu vi o erro que tinha cometido”, disse o réu, que optou por um depoimento parcial e respondeu somente as perguntas da defesa e dos jurados.

Acusação: “Um ciclo de violência que culminou em feminicídio”
A acusação foi conduzida pela promotora de justiça Luciana Cano Casarotto e pela advogada Alice Hertzog Resadori, como assistente de acusação. A promotora alertou que “foi um ciclo de violência perpetuado por anos”, lembrando que na residência do assassino foram encontrados um revólver e bombas caseiras.
“Esta morte não há de ser em vão. Ele vai pagar por todo o crime que cometeu, com direito a ampla defesa, como realmente teve”, disse Casarotto, que também apresentou os números de feminicídio no Rio Grande do Sul desde o início deste ano. De acordo com o monitoramento dos indicadores de violência contra as mulheres no RS, do Observatório de Segurança Pública, até o mês de junho foram registrados 36 feminicídios e 134 tentativas. Segundo levantamento da Lupa Feminista até o dia 4 de agosto, 49 feminicídios ocorreram no estado.
A advogada da família, Alice Hertzog Resadori, reforçou o impacto do crime na vida da filha do casal. “Ele não matou só a Débora, ele matou a infância da filha. Laurinha tem crises de ansiedade, ela chora e grita. Débora tinha o sonho de dar uma vida melhor para a filha”, disse. Resadori também criticou a tese inicial da defesa. “Mesmo depois de morta, ele continuou violentando ela, criando uma tese de que ela teria tirado a própria vida. Isso é mais uma violência.”

Atuando em seu primeiro caso de feminicídio, Resadori, em entrevista após a sentença, deixou um recado às mulheres que sofrem violência. “É óbvio que a gente quer que esse combate aconteça na prevenção, não na resposta a um crime como esse, mas diante da existência de fato de um crime, a decisão do Conselho de Jurados é muito importante para a gente dizer que basta de violência. Eu quero dizer para as mulheres que sofrem violência doméstica, que se inspirem nos casos como o da Débora e não deixem para registrar boletim de ocorrência depois. Que tenham coragem de denunciar a violência que sofrem, que peçam ajuda e que contem com a rede de apoio, para que a gente não precise passar por outro júri como esse.”
Defesa: Réu confesso, mas crime sob “violenta emoção”
A defesa de Felipe Faustino foi representada pelo advogado Andrey da Silva Moreira e pelas advogadas Robertha Machado Berte e Larissa Nathusa Conceição Enes. Com a confissão, os advogados admitiram a autoria do crime. “Essa defesa não está aqui para dizer que é admissível o que ele fez, apenas para garantir que ele cumpra a pena que merece”, afirmou Moreira.
A estratégia da defesa se concentrou em argumentar que o crime ocorreu sob “violenta emoção”. “Ele sabia o que fazia, mas estava em violenta emoção. A razão voltou quando viu o que fez e tentou forjar um suicídio”, declarou o advogado. A defesa pediu que a condenação levasse em conta essa atenuante, citando o parágrafo primeiro do artigo 121 do Código Penal. “Ele é um homem humilde, trabalhador, pai de família. Está sofrendo e vai carregar essa dor para sempre”, concluiu a defesa.

A sentença: “É preciso olhar para esses processos com sensibilidade”
Ao pronunciar a sentença, a juíza de direito Cristiane Zardo frisou que o aumento constante de casos de feminicídio cria um drama paralelo com graves consequências psicológicas: o de crianças e adolescentes que perderam a mãe para a violência e, em muitos casos, o pai para a prisão. De acordo com a magistrada, em 2021, mais de 2.300 brasileiros ficaram órfãos em decorrência de feminicídio, o que equivale a uma média de 25 casos por semana. Em 90% dos casos, o autor ou mandante do crime foi o companheiro ou ex-companheiro da vítima.
De acordo com o Mapa de Feminicídios da Policia Civil, das 111 vítimas de feminicídio em 2022, 89 eram mães, 43 delas tinham filhos com o próprio autor do crime. No referido ano, 219 pessoas perderam suas mães em decorrência do feminicídio, dentre elas, 95 crianças e adolescentes.

“É preciso olhar para esses processos com sensibilidade e perspectiva de gênero, considerando o impacto não só para a vítima, mas para toda a família. Entender que o contexto todo não envolve só a vítima. Ele envolve toda a família, os filhos, têm um impacto diferente. A gente tem que considerar as crianças que ficam: eles perdem a mãe e perdem o pai e, pior, eles sabem que perderam a mãe por causa do pai. Imagina, é um triplo trauma”, afirmou a magistrada ao Brasil de Fato.
Ainda na sentença, ao descrever a culpabilidade, a magistrada ressaltou que o fato foi premeditado, conforme se confirmou na prova colhida. “O réu preparou álibi, local do fato para simular suicídio (colocando garrafa de cerveja e embalagem de medicação, alegando que a vítima fazia uso), relatando para as pessoas um suposto sentimento de tristeza da vítima, a justificar que ela tirasse a própria vida”, expõe o texto.
A violência do agressor não se limitava somente a Débora. Em um registro de ocorrência em 2008, a bisavó do próprio réu pediu uma Medida Protetiva de Urgência em face das agressões sofridas, comprovadas por um áudio levado ao júri. Na sentença, a magistrada ressaltou que tal fato “demonstra tratar-se de contumaz agressor de mulheres, com evidente desprezo ao gênero feminino, traço de personalidade que não pode ser ignorado”.
Como mensagem final, ela reforçou a necessidade da prevenção e do trabalho coletivo. “Esse, como todos os outros casos, representa a nossa necessidade de prevenir, porque é só com a educação que a gente resolve isso. Eu posso fixar 30 anos (pena) aqui que não impede que quando ele sair ele cometa de novo. Temos todos a obrigação de trabalhar para que fatos como esse não aconteçam”, finalizou Zardo.

Um apelo à sociedade
Em entrevista após o júri, a promotora Luciana Casarotto frisou que a sentença representa uma resposta mínima diante da brutalidade do crime: “Significa um mínimo de reparação com o brutal feminicídio cometido, ainda com essa tentativa de forjar o suicídio da Débora, o que a avilta ainda mais, considerando a pessoa que ela era, líder comunitária, defensora dos direitos humanos. Uma crueldade muito grande, que hoje teve uma resposta mínima. Vinte e nove anos para aquela família, para a mãe que não está mais aí, para a filha que vai se criar sem mãe, agora sem pai. É o mínimo que a gente espera da sociedade que hoje cumpriu o seu papel”, afirma Casarotto.
Conforme ressaltou, o feminicídio não termina com a morte da mulher. “Essa chaga, essas marcas, elas ficam muito grandes em função justamente do papel da mulher na sociedade. Quando morre uma mulher nessas condições, muita coisa morre. Por exemplo, a infância da Laura, que agora a gente tenta, quem sabe, com a força da família, com a força da comunidade, fazer com que seja um pouco minimizado esse trauma.”
Por fim, deixou uma mensagem direta às mulheres. “Que não se coloque em risco, não acredite no príncipe encantado, entenda que a sua vida e a vida dos seus filhos estão em jogo. Denuncie e siga em diante. E não acredite que esse ciclo de violência vai se interromper por si só. Ele pode virar a sua morte”, alertou a promotora.

O patriarcado mata!
A mobilização da família, de amigos e do MAB exigindo justiça por Débora começou cedo, com uma vigília realizada em frente ao Fórum. O movimento mobiliza em Porto Alegre a campanha “O Patriarcado Mata”, exigindo justiça por Débora e sensibilizando contra o feminicídio.
Integrante da coordenação nacional do MAB no Rio Grande do Sul, Alexania Rossatto, lembra da importância da atuação de Débora Moraes na organização comunitária e na luta por justiça de gênero. “Débora era um símbolo de organização e de cuidado com os atingidos da barragem da Lomba do Sabão. Ela coordenava o grupo do MAB e teve um papel muito importante no processo de reassentamento das famílias que viviam na área da barragem. A Débora ajudou a organizar essas famílias e representava o movimento junto à prefeitura nesse processo, garantindo que os direitos das pessoas fossem respeitados.”
Ela também avalia o resultado do julgamento, que além de buscar justiça por Débora, também tem uma importância simbólica e política para o movimento. “Há quase três anos, temos destacado a relevância desse julgamento. Ele representa, para nós, um pedido de justiça e um momento de memória da luta da Débora. O MAB tem feito um debate intenso sobre a realidade das mulheres e a superação do patriarcado, com protagonismo feminino na militância. A morte da Débora foi um marco dentro do movimento, um alerta sobre a gravidade dos feminicídios no Brasil e a urgência de não naturalizarmos mais esse tipo de crime bárbaro. Estar aqui hoje e ouvir que a justiça foi feita é também uma forma de reafirmar a vida das mulheres e o legado de luta deixado por nossa companheira Débora.”
Daniele Alves, agora com 29 anos, também acredita que o legado deixado pela irmã mais velha é inspiração para muitas outras mulheres: “Eu sei que tem muitas mulheres hoje em dia que talvez tenham o mesmo medo ou pena que ela tinha, que era de expor o que acontecia. E é o que a mulher não deve ter, porque o agressor também não tem pena ou medo na hora de agredir, na hora de matar. Então ela mostra que a gente não tem que ter pena, mas que deve seguir em frente para não acontecer o que aconteceu com ela”, finaliza.
* Matéria realizada em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
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