‘A polícia brasileira aplica a palestinização das periferias’, diz escritor em debate sobre segurança na Flipei

“Nestes tempos de genocídio em Gaza, é possível afirmar que a polícia no Brasil aplica a palestinização da vida nas periferias”, definiu o escritor Igor Mendes durante um debate sobre segurança pública na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), na tarde desta sexta-feira (8), em São Paulo (SP). Na mesa intitulada “Não acabou, tem que acabar”, Mendes descreveu as forças policiais como uma “expressão fidedigna dessa sociedade de passado escravista e presente semi-escravista”.

Autor dos livros A pequena prisão, escrito a partir da experiência de sete meses preso em Bangu por participação nas jornadas de junho de 2013, e do romance Junho Febril, agora o escritor carioca lança uma publicação infantil, O menino e o gato na floresta de aço, todos pela N-1 edições. Igor Mendes integra a Academia Brasileira de Letras do Cárcere, organização que congrega escritores sobreviventes do sistema prisional. 

Com mediação da jornalista da Ponte Catarina Duarte, a mesa também foi composta pela economista Giselle Florentino, da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, e pelo pesquisador Almir Felitte, autor do livro A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, da Autonomia Literária.

Divulgado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o dado de que entre 2014 e 2024 60.394 pessoas foram mortas pela polícia foi o disparador da conversa. São dados de guerra, concordaram os palestrantes.

“O Brasil tem sido um laboratório social de emparedamento e controle da pobreza. O ovo da serpente da extrema direita foi chocado no debate de segurança pública, no discurso da lei e da ordem. Vocês devem se lembrar do Tropa de Elite aplaudido de pé nos cinemas”, argumentou Igor Mendes.

Fazendo referência às reflexões do jurista argentino Raúl Zaffaroni sobre a história jurídica das ditaduras latino-americanas, Igor Mendes defendeu que o método de fabricação do inimigo como forma de legitimar a violência estatal seguiu intacto com o advento da democracia. 

Se no regime ditatorial existia, junto ao oficial, um sistema penal paralelo para impor penas mais duras a determinados setores e um clandestino, para praticar tortura e execuções, hoje, para Igor Mendes, o paradigma não só se mantém, como se amplia. A seletividade dos alvos é escancarada. Ainda segundo o Anuário, 82% das pessoas mortas pela polícia em 2024 eram negras.

“Os MCs Poze do Rodo e Oruam, por serem funkeiros, são acusados do crime de apologia ao tráfico e são levados para trás das grades, quando por anos o famigerado [apresentador] Sikêra Júnior defendeu em rede de TV, concessão pública, apologia da morte, do ‘CPF cancelado’”, compara Mendes, dando um exemplo do que chamou de sistema penal paralelo, usado igualmente contra as lutas populares. “Também segue existindo o clandestino, que é o das execuções”, segue o escritor: “Só que numa escala maior”, citando a população carcerária brasileira que hoje se aproxima de um milhão de pessoas. 

‘Polícia foi criada para perseguir pessoas negras livres’

Os dados de guerra, destacou Almir Felitte, são sintomáticos da história sobre a qual se funda o Brasil. “Eu costumo dizer que dentro da própria esquerda repetimos que a Polícia Militar (PM) surge para reprimir escravizados. Mas na realidade o sistema policial, penal e carcerário se forma no momento em que o Brasil avançava no processo da abolição”, discorreu o advogado e pesquisador. “A polícia não nasce para perseguir escravos, ela nasce para perseguir pessoas negras livres”, sintetiza.

Além de seguir cumprindo esta função para a qual surgiu, servindo como “instrumento da elite”, afirmou Felitte, “vivemos cada vez mais uma dimensão cultural da instituição policial”. Para ele, o discurso cultivado nas instituições de segurança pública, de que qualquer controle externo “atrapalha” o trabalho dos agentes, vem se “amadurecendo” em um processo que faz com que a “defesa política das chacinas” esteja representada em PMs que atuam como influencers ou candidatos, bem como na boca da sociedade civil. 

Buraco mais embaixo

“Cria” de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ), Giselle Florentino chamou atenção que “ao contrário de outros estados, os dados de letalidade policial do Rio de Janeiro estão diminuindo. Mas não demonstram a realidade”. 

“Esses dados são feitos a partir de registros de ocorrências policiais. E nos últimos 20 anos a gente assiste, no Rio de Janeiro, o crescimento e a consolidação das milícias, que entendemos como uma força do Estado”, salientou Florentino, alertando para o fato de que mortes praticadas por esses grupos paramilitares são subnotificadas. “É preciso tratar os dados de letalidade policial a partir desta deficiência”, disse a economista.

“Na iniciativa a gente trabalha com desaparecimentos forçados, não há dados sobre isso”, exemplificou Florentino. Apenas na Baixada Fluminense, a organização identificou 103 cemitérios clandestinos. 

“O Rio de Janeiro vai ser o primeiro estado do país a ter polícia com helicóptero de guerra”, afirmou Giselle. “O governo federal comprou 12 helicópteros que foram usados na guerra do Vietnã. Eles dão seis mil tiros por minuto”, falou, indignada. 

“O que a gente está tentando inovar no debate é que a gente não quer um arsenal de guerra rodando na periferia. O que a gente quer”, defendeu a integrante da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, “é o corte do financiamento de políticas de segurança pública. Porque elas fazem parte de um projeto de extermínio”. 

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