Do ‘PL da Devastação’ à Lei da Contenção de Danos 

O presidente Lula (PT) vetou, no dia 8 de agosto, 63 dos 398 dispositivos do Projeto de Lei (PL) 2159, conhecido como “PL da devastação” ou “mãe de todas as boiadas”, que desestruturaria completamente os procedimentos de licenciamento ambiental brasileiro. 

Os vetos compõem os capítulos finais de um longo e tortuoso processo de tramitação do PL, que foi criado em 2004 por iniciativa do deputado petista Luciano Zica. A proposta original buscava regulamentar o licenciamento ambiental e atribuir responsabilidades entre órgãos do Estado e conselhos, em um esforço positivo de estruturação regulatória. Entretanto, durante sua tramitação de mais de 20 anos, o projeto foi radicalmente alterado. 

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Na gestão de Bolsonaro (PL), o PL foi desengavetado e se transformou profundamente para flexibilizar normas, fragmentar responsabilidades, reduzir critérios de licenciamento e restringir instâncias participativas. Apesar disso, a mobilização da sociedade civil e a atenção internacional aos retrocessos ambientais do período impediram sua votação durante os anos de governo bolsonarista. 

Entre 2018 e 2022, o franco desmonte dos órgãos de licenciamento e fiscalização, além do  discurso de incentivo aberto à atuação marginal dos empreendimentos, permitiu que o agronegócio e a mineração avançassem pela via da irregularidade, sem depender de mudanças legais. 

Paradoxalmente, foi no terceiro governo Lula que esses setores ganharam novo ímpeto para aprovar a proposta e os vetos do executivo podem ser entendidos como uma contenção de danos às medidas construídas por uma ampla ofensiva dos setores ligados ao agronegócio, à mineração e à infraestrutura. 

Aprovado na forma da Lei nº 15090/2025, o novo marco do licenciamento consolida mais um passo na reestruturação legal do modelo de neoextrativismo no Brasil, que vem passando por mudanças regulatórias desde o esgotamento do ciclo de alta do preço das commodities entre 2004 e 2014. 

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Desde então, os setores da mineração e do agronegócio se organizaram em uma ofensiva para assegurar a expansão de suas fronteiras e a máxima captura privada das rendas do setor primário, processo que agora ganha novo fôlego com os discursos do extrativismo verde e da demanda por minerais para eletrificação da indústria.

Um conflito histórico e o ajuste entre interesses

O que resta da Lei 15090 após os vetos pode ser entendido como uma síntese de forças contraditórias, em um governo dividido entre a necessidade de assegurar as rendas do extrativismo no contexto de restrição orçamentária, as tensões externas do tarifaço dos Estados Unidos, o ano de COP em Belém e as lutas frontais com o poder legislativo, onde as forças de extrema direita se amotinaram na última semana. 

Por um lado, há a pressão econômica dos Estados Unidos para que o Brasil coloque minerais estratégicos na mesa de negociação em troca de recuos no tarifaço, o que expressa a nova dimensão geopolítica da pressão sobre a exploração dos territórios. 

Por outro lado, no dia 23 de julho, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu um parecer histórico, estabelecendo que os Estados têm responsabilidade jurídica internacional no combate às mudanças climáticas. 

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A aprovação integral do novo marco do licenciamento ambiental poderia dar margem a uma responsabilização penal do Estado brasileiro na CIJ, além de uma enxurrada de contestações judiciais aos projetos licenciados. 

Por isso, uma das preocupações reiteradas nas declarações do governo federal a respeito dos vetos era garantir que os procedimentos de licenciamentos se mantivessem estruturados, garantindo segurança jurídica aos próprios investidores. 

A alegação de inconstitucionalidade aparece frequentemente nas justificativas dos vetos apresentados pela presidência, o que demonstra um esforço na garantia da legalidade, mas também um esforço em eximir o Estado de uma possível condenação internacional por violações socioambientais. Por isso, é possível perceber a participação da  Advocacia-Geral da União (AGU) em grande parte dos vetos.

O executivo balanceou interesses internos por meio da articulação de ministérios pela negociação dos vetos: o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Ministério da Fazenda. 

Houve também uma preocupação sobre a sustentação política do texto final, uma vez que os vetos serão ainda apreciados por um legislativo inflamado por profundas animosidades, e que tem prerrogativa para derrubar os vetos apresentados pela presidência.

O conteúdo dos vetos

O Planalto apresentou quatro princípios para orientar os cortes nos dispositivos do PL: preservar a integridade do processo de licenciamento; proteger os direitos de povos indígenas e comunidades quilombolas; garantir segurança jurídica para empreendimentos e investidores; e incorporar inovações que tornem o licenciamento mais ágil sem comprometer a qualidade.

De fato, os vetos resultam de uma altiva articulação dos setores comprometidos com a pauta ambiental e de direitos humanos dentro do executivo, e abarcam as dimensões mais graves da proposta aprovada pelo legislativo. Toda atenção deve ser voltada à maneira como senado e câmara os recepcionarão, acatando-os ou não.

 Na prática, os vetos significam:

  1. restringir a Licença por Adesão e Compromisso, realizada via auto-declaração, a empreendimentos de baixo impacto;
  2. manter os padrões nacionais de classificação dos empreendimentos, já que o texto propunha delegar aos estados o estabelecimento de critérios para categorização dos empreendimentos;
  3. preservar a proteção especial da Lei da Mata Atlântica contra o desmatamento;
  4. garantir a exigência de consulta a órgãos de proteção de povos e comunidades tradicionais; 
  5. manter a análise do Cadastro Ambiental Rural no licenciamento dos projetos, o que significa verificar a integridade da propriedade da terra dos empreendedores;
  6. preservar a responsabilização dos poluidores por danos ambientais indiretos; 
  7. assegurar a necessidade de manifestação de gestores de Unidades de Conservação afetadas no processo de licenciamento; 
  8. responsabilizar instituições financeiras pelo crédito a atividades poluidoras;
  9. sancionar a criação da Licença Ambiental Especial (LAE), que acelera o licenciamento de projetos estratégicos, vetando seu procedimento de fase única.

A Licença Ambiental Especial: o boi que passou

Talvez a criação dessa modalidade seja a mudança mais expressiva no novo marco do licenciamento. O dispositivo prevê que projetos considerados estratégicos pelo governo poderão ser licenciados mais rapidamente, embora o texto sancionado mantenha o procedimento em três fases constituídas pela Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação. 

A Licença Ambiental Especial (LAE) representa a ampliação de uma tendência já presente na política pró-minerais estratégicos, que desde 2021 adota um licenciamento mais rápido para projetos de exploração mineral definidos por um Comitê Interministerial. 

Desde então, essa política tem contemplado projetos altamente contestados por defensores do meio ambiente e comunidades tradicionais, como a mina de ouro da canadense Belo Sun, que pretende se instalar à beira do Rio Xingu em Altamira (PA) e ameaça uma das regiões mais biodiversas da Amazônia, já afetada pela usina de Belo Monte. 

Outro exemplo de empreendimento contemplado pela política pró-minerais estratégicos é o Bloco 8 da empresa Sulamericana de Metais, em Grão Mogol, Norte de Minas Gerais. O projeto de extração de ferro, integrado a uma holding chinesa que atua na cadeia de veículos elétricos, é fortemente questionado pelo uso intensivo de água na região do semiárido e pela dimensão das barragens de rejeitos do projeto. 

A aprovação da LAE pode expandir ainda mais esse tipo de licenciamento expresso para fronteiras associadas ao lítio e às terras raras, que são objeto de crescente disputa geopolítica. Com o avanço da mineração em áreas de recarga do cerrado, regiões que já são acometidas por escassez hídrica têm ampliado o desafio do abastecimento, principalmente quando se trata de comunidades tradicionais. A LAE pode apresentar, em ambos os casos, o aumento sistemático de violação de direitos humanos.    

Para regulamentar sua aplicação, o governo publicou a Medida Provisória 1308, conferindo eficácia imediata à LAE e estabelecendo que ela se aplica a “empreendimentos estratégicos” definidos por um conselho de governo a cada dois anos. Tal medida levanta dúvidas sobre os critérios usados para classificação do caráter estratégico, sua arbitrariedade e a abertura dessas decisões à contestação social, especialmente diante da pressa em liberar projetos como a exploração de petróleo na foz do Amazonas e a abertura da BR-319.

O que não foi vetado?

Ademais, há aquilo que não foi vetado. O Congresso conseguiu manter dispositivos que reduzem a competência da União sobre o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), flexibilizam exigências dentro do processo de licenciamento e permitem renovação automática de licenças para atividades de médio impacto. 

Houve uma alarmante tentativa do Congresso em dispensar o licenciamento para obras de manutenção e melhoria de infraestrutura já existente — abrindo espaço para a possibilidade de manter, sem o devido licenciamento, projetos executados de forma irregular, o que poderia homologar a ilegalidade e os danos ambientais. Ademais, o sentido da lei sancionada viabiliza o avanço de grandes projetos de escoamento mineral e agrícola, um dos principais fronts estratégicos de expansão do agroextrativismo no momento atual.

A lei sancionada firma prazos-limite para finalização de cada etapa de licenciamento, e a MP 1308 estabelece que os projetos estratégicos serão licenciados em até 12 meses. A efetivação desses prazos sem comprometimento da qualidade técnica da atuação das autoridades licenciadoras dependerá, entretanto, de um fortalecimento institucional dos órgãos — sobre o qual não versam nem a MP, nem a lei sancionada. 

Hoje, a fragilidade orçamentária de órgãos fiscalizadores e licenciadores é um dos aspectos que mais comprometem tanto a celeridade do licenciamento (demanda dos setores empresariais) quanto a qualidade técnica do licenciamento (demanda da sociedade atingida pelos empreendimentos). 

Um exemplo radical é a Agência Nacional de Mineração (ANM), cuja fragilidade estrutural faz dela o órgão público mais sujeito à corrupção, segundo um relatório do Tribunal de Contas da União de 2023. Foi em meio a essa fragilidade que, em 2018, a ANM emitiu um laudo de estabilidade da barragem da Mina Córrego do Feijão em Brumadinho, da VALE/SA, que veio a romper apenas um ano depois, em 2019. O empreendimento considerado de médio impacto deixou 272 vítimas fatais e tirou a vida de uma bacia hidrográfica inteira.

Lutas que seguem

A aceleração de processos de licenciamento não precisaria significar sua dilapidação através da flexibilização das regras, e poderia ser promovida com o aumento de pessoal e infraestrutura técnica dos órgãos públicos. Isso se faz mais necessário com as novas frentes de pressão ambiental associadas à transformação tecnológica dos dispositivos digitais e das baterias íons-lítio. 

O silêncio das novas medidas sobre essa questão,  assim como a opção por um sentido estritamente flexibilizante do novo marco, nos atenta para o verdadeiro fator impulsionador da ofensiva agromineral organizada no parlamento: não se trata apenas de um problema dos prazos e na demora do licenciamento, mas fundamentalmente de uma recusa ampla dos setores à responsabilização ambiental e a regramentos técnicos que diminuam sua margem de lucro. 

O fortalecimento e democratização do licenciamento é fundamental para que a lei e o controle social acompanhem as novas formas de predação ecológica: grave exemplo disso são os Data Centers, grandes infraestruturas de processamento de dados conhecidos como “sumidouros de água”, já que consomem volumes de água e energia comparáveis aos de cidades inteiras, e que ainda não têm critérios específicos de licenciamento, sendo tratados como simples obras civis. 

A Lei nº 15090/2025 não encerra o conflito, mas inaugura um novo capítulo de contestação social: o marco legal foi moldado na fricção entre interesses econômicos privados, a compulsão orçamento público pela obtenção das rendas do setor primário e a articulação de forças genuinamente comprometidas com a conservação dos biomas, seus povos e comunidades.

Os vetos funcionam como uma contenção e acomodação de pressões que repactuam extrativismo em um equilíbrio instável, hegemonizado pela ofensiva dos setores mineral e agrícola. Os povos, comunidades e movimentos populares mantêm-se atentos, construindo lutas das minas até os data centers, do campo às metrópoles, para reflorestar os horizontes da política.

Esther Guimarães e Fernanda Tomaz são militantes do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal. 

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