Última esperança: MPF pede federalização de reserva que teve 75% da área desmatada e invadida por 765 fazendas de gado

“As famílias foram expulsas com violência. Hoje, muitas vivem deprimidas, sem renda, pedindo ajuda no distrito. Mas ainda têm esperança de voltar”, diz Lincoln Fernandes de Lima, extrativista e presidente da Associação Bentevi. Morador da Reserva Extrativista Jaci-Paraná desde 1989, ele é uma das poucas lideranças que seguem resistindo à devastação provocada por invasores e grileiros dentro da unidade de conservação (UC).

Para Lincoln, a federalização da reserva é a única alternativa que pode salvar o território da destruição do agronegócio. “Se tirarem o gado e replantarem, em dez anos a floresta volta a se levantar”, afirma. A Resex, criada em 1996 com mais de 197 mil hectares para proteger comunidades seringueiras, perdeu 151 mil deles, cerca de 75% da área original, até 2023. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) organizados pelo Instituto Socioambiental (ISA).

A destruição motivou o Ministério Público Federal (MPF) a ingressar com uma Ação Civil Pública (ACP) pedindo que a União retome o controle da unidade, hoje sob responsabilidade do Estado de Rondônia. A ação judicial foi protocolada no fim de julho. Nela, o MPF afirma que o estado agiu com “deslealdade institucional” e que abandonou completamente a gestão da reserva, violando as condições da cessão da área pela União, em 1996.

O que era para ser uma unidade de uso sustentável virou um polo da pecuária ilegal. De acordo com a própria Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), ao menos 765 fazendas de gado se instalaram ilegalmente na RESEX. Juntas, abrigam cerca de 175 mil cabeças de gado – número que chega a 216 mil, segundo lideranças locais.

O registro abaixo foi gravado por Lincoln, na comunidade Bentivi, em setembro de 2024.

Na ACP, o MPF pede que o ICMBio seja obrigado a elaborar, no prazo de 90 dias, um plano de desintrusão da unidade. O plano deve incluir cronograma de execução, uso progressivo da força, levantamento fundiário para distinguir ocupações regulares e irregulares e a apreensão de todas as cabeças de gado existentes na área, com posterior venda administrativa conforme previsto em lei. Os recursos obtidos devem ser destinados à restauração ambiental da reserva.

Os procuradores também requerem que o Estado de Rondônia arque com todos os custos dessas ações – como fiscalização, desintrusão e recuperação ambiental – e seja condenado ao pagamento de R$ 10 milhões por danos morais coletivos, valor que deve ser revertido para projetos de reflorestamento em áreas públicas do estado.

Diante da urgência do caso, o MPF solicita que as medidas tenham eficácia imediata, sem necessidade de aguardar o trânsito em julgado, e, alternativamente, propõe que seja marcada uma audiência de conciliação entre as partes.

‘A lógica da extrema direita é a destruição’, afirma Neidinha Suruí

A liderança indígena Neidinha Suruí, mãe de Txai Suruí, vê na federalização da Resex um símbolo. “É preciso mostrar que a grilagem e a destruição não serão aceitas. Que o Estado que não cumpre a lei perde o direito de gerir essas áreas”, afirma.

Segundo ela, o caso de Rondônia revela uma política sistemática de desmonte das UCs. “Infelizmente, a lógica da extrema direita aqui é a da terra arrasada. A Assembleia Legislativa não protege nem o meio ambiente, nem a economia. Eles votam projetos para destruir tudo.”

Jair Bolsonaro (PL) obteve 70% dos votos para presidente em Rondônia na última eleição. Dos 24% deputados eleitos para a Assembleia Legislativa do estado, somente uma, Cláudia de Jesus (PT), é de um partido de esquerda.

Para Neidinha, manter a RESEX viva é também uma responsabilidade climática: “Cumprir a lei é manter a floresta em pé. Estamos às vésperas da COP30. A federalização pode recuperar essa área e garantir água, clima e bem-estar para o povo de Rondônia e do planeta”.

Crescimento das fazendas foi favorecido por leis estaduais

A Resex Jaci-Paraná foi criada por decreto estadual em janeiro de 1996, com a missão de garantir o modo de vida de mais de 250 famílias extrativistas. Mas desde a década de 2010, e especialmente entre 2016 e 2022, período dos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), a unidade passou a ser alvo de uma ofensiva coordenada de grilagem, extração ilegal de madeira e expansão da pecuária.

A ofensiva ganhou força com leis estaduais que, segundo o MPF, buscaram “legalizar o ilegal”. É o caso da Lei Complementar nº 1.089/2021, que tentou reduzir a RESEX em 90%, com o argumento de que a área já estava invadida. A norma ficou em vigor por poucos meses e foi declarada inconstitucional pelo Judiciário. Mas os danos foram imediatos: o desmatamento na unidade aumentou 2.700% no período.

Para Edjales Benício de Brito, gestor ambiental e membro da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, esse foi um sinal claro. “Foi um posicionamento claro de que o Estado não tinha nenhum compromisso em manter a Resex, restaurar a floresta ou garantir os direitos dos extrativistas”. Ele cita o documentário Exilados , que mostra a expulsão das famílias extrativistas, produzido pela Kanindé, pela Organização dos Seringueiros de Rondônia e pela WWF-Brasil.

Segundo o MPF, ao menos duas outras leis estaduais (LC 1.100/2021 e LC 1.274/2025) agravaram o quadro ao flexibilizar as regras de regularização fundiária e ambiental. Um estudo da Universidade Federal de Rondônia mostra que entre 2018 e 2024 o estado perdeu 2 mil km² de áreas protegidas e viu aumentar o garimpo, a contaminação por mercúrio, o uso de agrotóxicos e os conflitos fundiários.

Aprovada em abril de 2025 pela Assembleia Legislativa de Rondônia, a Lei Complementar 1.274/25 criou o Programa Estadual de Regularização Ambiental Diferenciado da Resex Jaci-Paraná (PERAD-RO), prevendo a anistia a ocupações ilegais e crimes ambientais cometidos dentro da unidade de conservação. A norma autoriza, por até 30 anos, o uso da terra por ocupantes considerados “consolidados”, extingue multas ambientais e ações civis públicas, e legitima a exploração econômica da área, desde que não haja ampliação da ocupação.

A lei está sendo questionada pelo Ministério Público de Rondônia por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, sob a justificativa de que cria uma “situação jurídica de tolerância e legitimação da ocupação irregular”.

Reportagem da Agência Pública destacou que a JBS – maior empresa de carnes do mundo – está entre os possíveis beneficiários da anistia, por já ter adquirido gado criado ilegalmente na Resex. A lei impede a responsabilização civil e administrativa de empresas que compraram produção oriunda da área nos últimos 30 anos, mesmo quando vinculada a desmatamento ilegal.

A empresa e outros frigoríficos são réus em ações que cobram indenizações milionárias por danos ambientais, conforme revelou investigação da Pública.

“É uma bizarrice. Regularizar fazenda em unidade de conservação é premiar o crime ambiental”, critica Edjales Benício, que também é coordenador da Rede de Trabalho Amazônico (GTA).

Vista aérea de uma das fazendas de gado na Resex Jaci-Paraná (Foto: Reprodução/Documentário Exilados)

Expulsões, ameaças e adoecimento

Além do colapso ambiental, a Resex Jaci-Paraná tornou-se palco de uma grave crise humanitária. Extrativistas foram expulsos por jagunços armados, tiveram casas queimadas e sofreram ameaças de morte. Casos como os de Efigênio, vice-presidente da Associação Bentevi, e Lincoln Fernandes, atual presidente, foram denunciados ao Ministério Público e à Defensoria Pública.

“As pessoas que resistem estão em risco permanente. Algumas estão no Programa de Proteção a Testemunhas. As que foram expulsas vivem em situação de miséria, sem renda, sofrendo com depressão e ansiedade. Muitas querem voltar”, relata Lincoln.

Estudo citado pelo MPF indica que não há plano de manejo vigente, nem conselho deliberativo funcionando. A administração estadual também nunca emitiu títulos de concessão de uso (CCDRU) para as associações extrativistas, um direito garantido por lei.

Localizada em área estratégica, próxima a diversas terras indígenas e nascentes de rios, a RESEX Jaci-Paraná pode ser recuperada, acredita o presidente da Bentivi. “A floresta é viva. Ela volta se deixarem”, resume Lincoln.

O post Última esperança: MPF pede federalização de reserva que teve 75% da área desmatada e invadida por 765 fazendas de gado apareceu primeiro em Brasil de Fato.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.