
João Camarero (ao violão) e Assucena reavivam músicas como ‘Nuvem negra’ e ‘Tristeza do Jeca’ em show no Clube Manouche
Rodrigo Goffredo
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: Assucena e João Camarero
Artistas: Assucena e João Camarero
Data e local: 15 de agosto de 2025 no Manouche (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2
♬ “Pauleira”, admitiu Assucena após esculpir Retrato em branco e preto (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1968) em sintonia com o toque do violão de João Camarero no deslumbrante show do duo.
Sim, cantora e violonista se juntaram e enfrentaram sucessivas pauleiras no roteiro de show que exalta a canção brasileira – “tesouro nacional” na justa definição da artista – em apresentação que extasiou o público que ocupou as mesas do clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ), na noite de sexta-feira, 15 de agosto, na primeira das duas apresentações do duo nessa casa com clima de cabaré chic.
Ainda em “estado de feitura”, como Assucena sublinhou diversas vezes em cena, o show é oportuno desdobramento da apresentação realizada pela cantora e o violonista em junho, dentro de projeto do Sesc São Paulo, com roteiro calcado no repertório do álbum À flor da pele (1991), registro do show que reuniu em 1990 o cantor Ney Matogrosso e o violonista Raphael Rabello (1962 – 1995), mestre das sete cordas.
Mais do que discípulo de Rabello, Camarero já se igualou ao antecessor, como ficou evidenciado no medley instrumental com que o violonista abriu o show em número solo. Honrando o legado de Baden Powell (1937 – 2000), do qual é legítimo herdeiro, Camarero encadeou três afrosambas de Baden com Vinicius de Moraes (1913 – 1980) – Canto de Ossanha (1966), Berimbau (1963) e Consolação (1963) – com destreza no manuseio das cordas do violão. Os acordes foram esculpidos com precisão e espantosa naturalidade.
Mesmo sem atingir a inigualável categoria vocal de Ney Matogrosso, Assucena brilhou do início ao fim do show ao encarar repertório talhado para grandes intérpretes, sem levar “rasteiras melódicas”, para usar expressão usada pela artista em cena. Cantora egressa do trio As Bahias e a Cozinha Mineira, Assucena já encarou o repertório de Gal Costa (1945 – 2022) em show anterior e vem ganhando progressiva intimidade com o cancioneiro brasileiro de alta estirpe.
João Camarero e Assucena no palco do clube Manouche em 15 de agosto na estreia carioca do show do violonista e da cantora
Rodrigo Goffredo
Na estreia carioca do show com Camarero, a cantora somente foi traída pela tensão no canto de Modinha (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958), número introduzido por trecho instrumental do Prelúdio nº 3 (1940), de Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) ao violão. Superado o nervosismo inicial, a cantora ganhou confiança e se irmanou com o violonista, com quem bordou Duas Contas (1951), requintado samba-canção de Garoto (1915 – 1955), compositor e músico que abriu alas e caminhos no violão brasileiro nos anos 1940 e 1950.
Como ressaltou em determinado momento do show, Assucena traz uma atriz na alma e fez uso dessa teatralidade no canto e nos gestos que enfatizaram os significados de músicas como o samba-canção O mundo é um moinho (Cartola, 1976), a balada Nuvem negra (Djavan, 1993) e o bolero Tu me acostumbraste (Frank Domínguez, 1933).
Natural do sertão da Bahia, Assucena se permitiu até inserir citação de Baião (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1946) no samba Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso, 1938). Em rota não tão distante assim, o movimento de cantora e violonista rumo à estrada do sertão para seguir a toada de No rancho fundo (Ary Barroso e Lamartine Babo, 1931) e Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira, 1922) – música que representou ponto culminante de beleza e emoção do show – resultou feliz.
Em momento surpreendente, João Camarero soltou a voz em Trocando em miúdos (1977) em tom apropriado que evocou o canto de Francis Hime, parceiro de Chico Buarque na canção.
Trocando em miúdos foi a primeira parte de diálogo conjugal que linkou duas canções sobre separação e terminou com o canto de Olhos nos olhos (Chico Buarque, 1976) por Assucena em número sucedido por outro sucesso de Maria Bethânia, Negue (Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos, 1960), samba-canção associado a Bethânia desde 1978.
Número em que a cantora regeu o coro do público, Balada do louco (Arnaldo Baptista e Rita Lee, 1972) encerrou o show com a reiteração da total sintonia e cumplicidade entre Assucena e João Camarero, requisitos fundamentais para que shows em duo sejam bem-sucedidos.
No bis, Camarero voltou a cantar, sorvendo Sétimo drink (2025) com a propriedade de ser o parceiro de Paulo César Pinheiro nesta música ainda inédita e ambientada no universo noturno e esfumaçado do samba-canção e do bolero. No arremate do bis, coube a Assucena cantar outra inédita de Camarero com letra de Pinheiro, Pó de vidro, música que se insinuou aliciante na interpretação dessa cantora teatral que se afinou à flor da pele com o grande violonista em show que merece vida longa.
Assucena e João Camarero em show feito no clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ), com teatralidade no canto e na alma da artista
Rodrigo Goffredo