A verdade sobre a Vale: dossiê denuncia mineração sem responsabilidade socioambiental em MG

O dossiê A Verdade Sobre a Vale S.A. em Minas Gerais: Compromissos e Abusos foi entregue recentemente aos acionistas da Vale, como forma de denúncia sobre a real atuação da empresa nos territórios. 

O documento aponta que a mineradora não cumpre com os compromissos socioambientais que propagandeia e demanda a criação de uma Comissão Internacional Independente,  como um canal permanente de denúncias, para monitorar e auditar os impactos ambientais e sociais causados nos territórios.

Elaborada pelo Instituto Cordilheira e pelo Movimento pelas Serras e Águas de Minas Gerais (MovSAM), a iniciativa é fruto de uma parceria com a Earthworks, uma organização estadunidense fundada em 1988 com enfoque no combate aos impactos gerados pela extração de petróleo, gás e minerais. 

A ação ressalta a importância de os acionistas também pressionarem pelo respeito às populações atingidas, como explica o integrante da Earthwork Jan Morril. 

“Muitas organizações têm participado de conversas com investidores interessados em saber como a Vale está cumprindo ou não seus compromissos com os direitos humanos e com a sustentabilidade ambiental. Esse dossiê apresenta novas informações que, certamente, vão fazer parte dessas conversas no futuro. Os investidores devem se informar”, destaca.

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Apresentado no dia 30 de abril, durante a Assembleia Geral Ordinária (AGO) 2025, encontro anual dos investidores da mineradora, o documento tem como objetivo central denunciar as “contínuas violações de direitos humanos” cometidas pela Vale em suas operações em Minas Gerais.

“Esperamos que os investidores sejam uma parte importante do processo de abordagem das sérias preocupações apresentadas no dossiê”, complementa Morril.

A irresponsabilidade da Vale 

Na última década, a empresa foi responsável direta por duas tragédias-crime, ocorridas com os rompimentos de barragens de rejeitos, nos municípios mineiros de Mariana e Brumadinho. 

No primeiro caso, a barragem de Fundão despejou, ao romper em 2015, cerca de 50 milhões de metros cúbicos de lama de rejeitos sobre o rio Gualaxo do Norte, na bacia do Rio Doce, provocando a morte imediata de 19 pessoas e de um nascituro, além do impacto ambiental que chegou até o Oceano Atlântico, no estado do Espírito Santo.

Já em Brumadinho, o segundo maior desastre industrial do século 21, ocorrido em 2019 com o rompimento da barragem de rejeitos B1, na mina de Córrego do Feijão, gerou  a morte de dois nascituros e 270 pessoas que, como pontua o dossiê, “não tiveram a mínima chance de escapar da agonia de uma morte sufocante”. A catástrofe provocou ainda o desmatamento de grandes áreas, contaminou o Rio Paraopeba e é responsável por milhares de pessoas traumatizadas e adoecidas em toda a bacia. 

Anos depois dessas tragédias, a empresa pouco fez em relação às demais situações de risco que segue impondo ao povo mineiro, como nos casos de operações e plantas em Barão de Cocais, Itabira, Ouro Preto e Mariana. Houve também a retomada das atividades nas minas Córrego do Feijão/Jangada em Brumadinho, e os projetos Apolo e Serra da Serpentina, que têm causado grande apreensão entre moradores, ambientalistas e pesquisadores.

“A Vale cria narrativas fantasiosas, com a promessa de uma mudança estrutural em sua governança e de ações de responsabilidade socioambiental. Uma alteração real no comportamento da empresa parece estar cada vez mais distante, tendo em vista as recorrentes e graves violações de direitos humanos, os cotidianos danos socioambientais e as falsas soluções apresentadas diante da crise climática global e da terrível perda de biodiversidade causada pelo extrativismo operado”, pontua o dossiê.

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De acordo com Daniel Neri, ambientalista, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG) e doutor em Política Científica e Tecnológica, a continuidade das más práticas e a negligência se apresentam, por exemplo,  na lentidão para descomissionar barragens com alto grau de risco. 

“Notamos nitidamente que não há nenhum empenho sério da empresa em aplicar soluções de engenharia, disponíveis hoje, para descomissionar rapidamente essas estruturas, o que reforça a falta de compromisso em cumprir as promessas que faz nos seus relatórios, que são apenas para os acionistas verem e ficarem com a consciência limpa”, denuncia. 

O terror das barragens 

Outro ponto de desrespeito com as comunidades é o chamado “terrorismo de barragem”, prática que, de acordo com Klemens Laschefski, professor de geografia no Instituto de Geociências (IGC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta/UFMG), se aplica a barragens de alto risco, com as quais a mineradora segue buscando lucro. 

“Fala-se muito sobre o descomissionamento das barragens, mas o risco real de rompimento nem sempre é o fator determinante. Trata-se, antes, da exploração econômica do minério de ferro restante nos rejeitos, que pode ser extraído por meio de novas tecnologias. Mas, para isso, é necessário deslocar as famílias e  gerar uma grande intervenção ambiental “, destaca. 

O que o professor da UFMG pontua remete a uma das denúncias presentes no dossiê: a de que a Vale, segundo comunidades, organizações sociais e pesquisadores suspeitam, manipulou os órgãos estatais e forjou a elevação artificial do nível de risco de barragens. 

O objetivo seria forçar o deslocamento das populações do entorno e facilitar a ampliação da exploração minerária em novas áreas ou nos rejeitos. Seria o caso da barragem Sul Superior em Barão de Cocais.

“Na madrugada do dia 8 de fevereiro de 2019, duas semanas após o rompimento da barragem em Brumadinho, soaram sirenes e ouviram-se alertas de alto falantes nos povoados de Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Gongo, todos à jusante da barragem Sul Superior, da mina de Gongo Soco, da Vale, em Barão de Cocais, MG”,  relata o dossiê. 

Esse episódio foi tratado pela mineradora e pela mídia como uma “ação de cunho preventivo”, o que o dossiê questiona, uma vez que a evacuação aconteceu no meio da noite, em comunidades que nunca haviam passado por nenhum treinamento para esse tipo situação e não receberam comunicado prévio. Além disso, no momento da “simulação”, os auto-falantes estavam anunciando uma “situação de emergência real”.

Laschefski reforça ainda que esse não foi um evento isolado. “A população é submetida a um desgaste psicológico completamente desnecessário, com sirenes, muitas vezes no meio da noite, e treinamentos de segurança. Por meio da designação de Zonas de Autosalvamento (ZAS), a população que mora nas regiões afetadas tem que viver com medo e horror e, se necessário, como a palavra auto salvamento indica, correr para salvar suas vidas”.

Para o professor, o Estado é cúmplice, ao consolidar legalmente uma prática que viola os direitos humanos, como o respeito à inviolabilidade da vida e o direito à vida digna. 

Para o ambientalista Daniel Neri, ao se vender como uma empresa comprometida com os direitos humanos e a sustentabilidade, a Vale “re-viola” as populações que convivem diariamente com as consequências de sua atuação predatória.

“Isso é ridículo, é banalizar a inteligência e a percepção das pessoas que vivem os conflitos produzidos pela Vale nos territórios em que ela parasita”, destaca. 

Falácia na  transição energética 

Outro ponto defendido pelas organizações ao longo do dossiê é a incongruência de uma mineração sustentável. Segundo o documento, “a essência da mineração é ferir a natureza, explodir o corpo da terra, abrir buracos, secar aquíferos e extrair um recurso natural finito” e, por isso, esse modelo industrial será sempre insustentável. 

Nesse sentido, a ação pontua que qualquer atuação minimamente responsável do ponto de vista ambiental implicaria em uma diminuição dos lucros, motivo pelo qual a Vale não altera as suas práticas. 

Para Carolina Moura, jornalista especializada em Gestão do Ambiente e Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Instituto Cordilheira, é muito preocupante a interface entre o setor de mineração e a agenda climática. 

“Estamos assistindo a uma proposta de transição energética vinda do Norte Global, que demanda minerais chamados de críticos. Fantasiada de mineração verde e de setor que vai salvar o planeta do problema climático, estamos vendo o avanço de uma nova fronteira do extrativismo predatório”, afirma. 

Ainda de acordo com Moura, esse modelo, em sua natureza, é contraditório com a proposta essencial que deveria ser a base da transição energética para solucionar a crise climática: diminuir a destruição ambiental, para evitar ainda mais eventos climáticos extremos.

Na mesma linha, Klemens relaciona a manutenção desses modelos exploratórios e sua expansão iminente com uma nova submissão do Brasil aos mercados mundiais como fornecedor de matérias-primas, em um esquema que pouco beneficia o desenvolvimento nacional ou as populações nos territórios. 

“As palavras ‘sustentabilidade’, ‘descarbonização’ e ‘transferência de energia’ servem, portanto, como uma espécie de ‘mensagem de salvação’ para disfarçar a colonização da América Latina, da mesma forma que o evangelho do cristianismo serviu nos séculos anteriores. Tememos expropriações de terras em proporções inimagináveis, às custas dos povos tradicionais e indígenas, bem como das últimas áreas de valor ecológico “, denuncia o professor da UFMG. 

COP 30 

Com a aproximação da Conferência das Partes (COP) 30, que será realizada no Brasil, os especialistas temem que o evento se torne uma oportunidade para que a indústria mineral se posicione, definitivamente, como solução para a questão climática. A própria Vale tem se colocado como um ator importante na organização da COP, que, para Moura, pode ficar conhecida como a “COP da Mineração”. 

“Aparentemente, a fórmula abstrata do CO₂ fez com que esqueçamos completamente o meio ambiente e a justiça social, elementos fundamentais do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, entendemos que os rompimentos em Brumadinho e em Mariana foram, na verdade, apenas eventos isolados provocados por um desastre muito maior: o sucateamento da legislação ambiental e dos povos tradicionais e indígenas”, afirma Laschefski. 

O outro lado

O Brasil de Fato MG entrou em contato com a Vale para comentar sobre as denúncias. A reportagem será atualizada, caso haja um posicionamento da empresa.

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