Confesso que a possibilidade de que o Congresso Nacional aprove o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021 – que, entre outras desgraças, fragiliza o licenciamento ambiental -, me apavora. E me apavora também a possibilidade de que o governo federal não enfrente com todas as armas possíveis esta ameaça.
Lembro que, na juventude, na década de 80, ouvia pelo rádio as notícias sobre Cubatão, em São Paulo, a cidade chamada de “vale da morte”. Diziam que, por causa das indústrias petroquímicas que operavam sem nenhum controle, as crianças estavam nascendo sem cérebro. Falavam de um céu escuro de fumaça, de árvores mortas, de gente que não podia mais sair de casa sem sentir o ar arranhar o peito. Aquilo me dava medo. Mas eu achava que era coisa distante, dessas que só acontecem nas cidades industrializadas, longe da nossa beira de rio.
Hoje, no entanto, esse mesmo terror está ameaçando a existência de todos nós que vivemos na Volta Grande do Xingu, no Pará. A mineradora canadense Belo Sun quer instalar aqui a maior mina de ouro a céu aberto do país. É um projeto previsto para funcionar por quase 20 anos, que quer escavar duas crateras do tamanho do Morro da Urca dentro do assentamento Projeto de Assentamento (PA) Ressaca; que planeja fazer duas montanhas de estéril, de cerca de 200 metros de altura cada, e mais de 300 hectares de extensão; que pretende fazer uma barragem de rejeitos tóxicos de 35 milhões de metros cúbicos a pouco mais de um quilômetro do rio Xingu; e usar mais de 470 metros cúbicos de água por hora, o suficiente para abastecer uma cidade de 45 mil habitantes.
Caso liberado, o projeto será um pesadelo; as explosões ininterruptas das escavações, as violências, contaminações, mortes de bichos e da floresta, nuvens de poeira, a seca dos córregos, igarapés e águas subterrâneas – tudo isso em meio aos já quase insuportáveis impactos do aquecimento global, que ano a ano seca mais a Amazônia -, são uma perspectiva aterrorizante.
O que ainda nos protege deste terror é a suspensão, na Justiça, da licença de instalação de Belo Sun. Mas e se o Congresso aprovar o PL 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação, que desmonta o licenciamento ambiental, permite auto-licenciamento, ignora impactos cumulativos, e pode usurpar o direito à consulta prévia dos povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas?
Se for aprovado, projetos como o da mineradora Belo Sun, hoje barrados por irregularidades, passarão a ser autorizados como se fossem seguros. Para se ter uma ideia, a barragem da Belo Sun pretende acumular um coquetel tóxico de rejeitos com metais pesados, cianeto e outros poluentes. Se houver vazamento ou rompimento, o impacto sobre o rio Xingu pode ser irreversível – matando peixes, contaminando a água e envenenando comunidades inteiras. Não seria diferente do que acontecia em Cubatão, onde a contaminação por metais envenenava até o leite materno.
Fico pensando muito nisso. Foi justamente a ausência de controle ambiental que tornou Cubatão um símbolo mundial da destruição. Sem leis rígidas, sem exigência de estudos de impacto e com indústrias funcionando sem fiscalização, aquela cidade virou um laboratório da tragédia. O preço foi a saúde da população e dezenas de vidas perdidas. E isso só começou a mudar quando o Brasil reconheceu que precisava de uma legislação ambiental robusta, com regras claras, estudos de impacto, responsabilização de infratores e limites estritos a projetos com potencial de impacto.
Nós aqui na Volta Grande do Xingu, onde foi construída a hidrelétrica de Belo Monte – projeto considerado um dos maiores crimes ambientais da história recente do nosso país -, conhecemos bem os sofrimentos causados por uma grande obra, licenciada aos trancos e barrancos às custas de várias violações da legislação ambiental. Penso o que seria de nós se o pouco de proteção legal que nos concederam já não existisse…
Sem licenciamento, o que se libera não é desenvolvimento. É a contaminação da água, é o ar que mata, é a terra envenenada, é a repetição de tragédias que já conhecemos. E isso acontece com apoio deste Congresso que escolheu dar as costas para o povo brasileiro. Afinal, criam e aprovam projetos que transformam irresponsabilidade em lei, legalizam a destruição e servem aos interesses de poucos — enquanto colocam toda a população em risco.
O licenciamento foi criado para evitar que o país repita tragédias. Mas querem transformar em regra o que hoje é exceção: passar por cima dos direitos de quem vive, pesca e planta em territórios como o nosso. A promessa de progresso é a mesma de sempre: prosperidade. Mas os empregos são temporários. Os lucros vão embora. E os danos ficam: na terra, na água, no corpo das crianças.
A história de Cubatão que, tão distante do Xingu, pairava mais como uma sombra escura no imaginário da minha juventude, se reascende para mim como um alerta. Foi a prova do que acontece quando o lucro vem antes da vida. Por isso, o licenciamento precisa ser fortalecido, não desmontado. Especialmente na Amazônia, onde a floresta já grita por socorro e os povos seguem sendo silenciados.
Por isso é urgente que a população se levante para barrar este desastre ambiental, que afetará o humano e não humano. Assim como é urgente que o governo federal e todos os seus ministros, secretários e advogados assumam esta luta com o povo. E se aprovado o PL da Devastação, que Lula vete. Vamos agir para salvar nossos territórios e nossos rios, enquanto ainda há tempo.
*Antonia Melo é coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, de Altamira (PA), e uma das mais conhecidas defensoras dos direitos humanos e da natureza da Amazônia
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