ES bate recorde na redução da extrema pobreza, mas 70 mil ainda sofrem com a fome

Pobreza
Foto: Agência Brasil

O Espírito Santo alcançou, em 2024, o menor índice de extrema pobreza de toda a sua série histórica: 1,7% da população viveu com menos de R$ 218 por mês, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foi uma queda de 1 ponto percentual em um ano e o número representa mais de 70 mil capixabas.

No entanto, por trás desse dado ainda vivem histórias de dor, invisibilidade e fome. São vidas que esperam para transformar estatísticas em dignidade.

No bairro Vila Garrido, em Vila Velha, Cristiane Novaes acorda antes do sol para preparar o café dos filhos. O cheiro do café contrasta com a incerteza do que haverá para o almoço.

Desempregada, mãe de filhos pequenos, Cristiane vive com o pouco que consegue juntar com os benefícios sociais e com a ajuda do Almoço Solidário. “É complicado porque criança gasta bastante, é fralda, é leite… A gente vai empurrando como pode”, conta.

“Eu recebo o Bolsa Família, o Bolsa Aluno, mas quase não dá para tudo. O que ajuda mesmo é o Almoço Solidário. Já teve dia que não tinha nada para comer em casa e precisei correr lá para pedir ajuda”, relata. Para Cristiane, cada refeição colocada à mesa é uma vitória silenciosa contra o desespero da fome.

Cristiane Novaes, moradora de Vila Garrido, Vila Velha
Cristiane Novaes, moradora de Vila Garrido, Vila Velha. Foto: TV Vitória

Mesmo diante das dificuldades, ela mantém o sonho de trabalhar e conquistar uma vida melhor para os filhos.

Quando a gente tem filho, pensa mais neles do que na gente. Meu sonho é trabalhar, poder comprar as coisas das crianças, o básico, sem precisar pedir, desabafa.

Crianças sem infância

A história de Luzia da Silva, moradora do bairro Ataíde, em Vila Velha, mostra outro lado da pobreza extrema: as marcas deixadas por quem sobreviveu a ela.

Ela tinha apenas 8 anos quando começou a trabalhar para ajudar a sustentar os irmãos menores. Enquanto outras crianças brincavam, Luzia acordava às 4 horas da madrugada para acompanhar a mãe em faxinas em troca de comida.

“Parecia que eu nem existia, era como se eu fosse invisível”, lembra Luzia, emocionada, ao recordar os dias em que pedia pão duro e restos de comida para alimentar os irmãos.

A gente comia farinha com feijão ou farinha com açúcar. Às vezes não tinha nada, e eu saía para pedir porque não aguentava ver meus irmãos com fome.

A virada na vida de Luzia começou quando, ainda criança, foi chamada para trabalhar fixo em uma casa de família, onde recebia roupas e comida em troca do trabalho. “Eu quis mudar, quis crescer. Comecei a trabalhar, pagar fiado para ajudar minha mãe, comprar o que faltava em casa”, conta.

Luzia da Silva, moradora do bairro Ataíde, em Vila Velha
Luzia da Silva, moradora do bairro Ataíde, em Vila Velha. Foto: TV Vitória

Mas a trajetória não foi linear. Após casar, Luzia voltou a enfrentar momentos de escassez, principalmente quando os filhos eram pequenos. “A gente passava muito aperto, mas não pedia mais porque eu já era adulta. Foi só quando conseguimos um lote para construir nossa casa que a vida começou a melhorar”, revela.

Hoje, Luzia celebra poder entrar em um restaurante e escolher o que comer. “Eu nunca esqueço de onde eu vim. Ainda tem muita gente passando pelo que eu passei, e eu digo: se a pessoa quiser mudar, ela consegue, mesmo que seja aos poucos”, afirma.

Redução da extrema pobreza

Os números mostram que o Espírito Santo tem conseguido reduzir a extrema pobreza de forma consistente, especialmente após o pico registrado em 2021, no auge da pandemia, quando a taxa chegou a 7,2%.

Entre 2021 e 2024, cerca de 37 mil pessoas saíram dessa condição, reflexo de ações integradas do governo estadual com programas sociais federais.

A taxa de extrema pobreza no Espírito Santo caiu para 1,7%, menor nível da série histórica. O gráfico abaixo mostra a evolução no Estado em comparação ao Brasil ao longo dos últimos anos.

Gráfico Taxa de Extrema Pobreza

Apesar dos avanços na redução da pobreza extrema, o Espírito Santo ainda enfrenta desafios na diminuição das desigualdades de renda.

Segundo dados do IBGE, o Estado fechou 2022 com um Índice de Gini de 0,493, o 10º menor do Brasil, indicando uma distribuição de renda menos desigual em comparação a outros estados, mas ainda distante do ideal.

Gráfico rendimento domiciliar per capita

A secretária de Estado de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social, Cyntia Grillo, explica que o combate à extrema pobreza envolve múltiplas estratégias.

“Criamos o programa Incluir 2.0 e fortalecemos políticas de transferência de renda, como o Bolsa Capixaba e o Vale Gás Capixaba. Também investimos em qualificação profissional e no encaminhamento ao mercado de trabalho, além de apoiar quem deseja empreender”, detalha.

Ainda segundo a secretária, uma das estratégias fundamentais tem sido a busca ativa para localizar famílias invisíveis ao Cadastro Único.

Secretária de Estado de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social, Cyntia Grillo
Cyntia Grillo, secretária de Estado de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social. Foto: TV Vitória

Esse é o nosso maior desafio. Por mais que a tecnologia e a divulgação ajudem, ainda existem famílias que não sabem que têm direito aos benefícios, cursos de qualificação ou oportunidades para melhorar de vida. Estamos intensificando o trabalho em parceria com os municípios para chegar a essas pessoas, afirma a secretária.

Onde estão as pessoas em extrema pobreza

Apesar dos avanços, 1,7% na linha da extrema pobreza no Estado representa mais de 73 mil pessoas e elas vivem principalmente em áreas de alta vulnerabilidade, como Ibitirama, São Domingos do Norte e Águia Branca, conforme o Índice de Vulnerabilidade do Cadastro Único. Nessas regiões, a pobreza extrema não é apenas um dado, mas um cotidiano de privações.

Os dados abaixo detalham os 10 municípios capixabas mais vulneráveis segundo o IVCAD, destacando onde estão concentradas as famílias que ainda vivem em situação de extrema pobreza no Espírito Santo.

Em muitas casas, como a de Cristiane, falta gás de cozinha, e o medo de não ter o que comer no dia seguinte é constante.

“Às vezes eu deito e fico pensando se amanhã vai ter comida para meus filhos”, confidencia, com a voz embargada. As dificuldades se multiplicam quando se trata de buscar trabalho, cuidar de filhos pequenos e enfrentar a burocracia para acessar benefícios.

Segundo o governo do Estado, a meta é reduzir ainda mais a extrema pobreza, chegando a 1,3% até 2026. Para isso, a estratégia inclui ampliar a rede de Centros de Referência em Assistência Social (Cras), capacitar servidores para a busca ativa e fomentar oportunidades de emprego e renda.

Vencer a pobreza é possível

Histórias como a de Luzia mostram que, com apoio e oportunidades, é possível sair da extrema pobreza, mesmo que o caminho seja longo.

Eu sei o que é não ter nada, mas também sei que é possível mudar, passo a passo. É preciso querer, não desistir, mesmo quando tudo parece difícil, diz Luzia, enquanto ajeita orgulhosa a planta que cuida na varanda da casa que construiu com esforço.

Já Cristiane espera ansiosa pelo dia em que poderá dizer o mesmo. “Eu quero trabalhar, quero dar uma vida melhor para os meus filhos. Quero que eles estudem, que tenham o que eu não tive. Se eu conseguir um emprego, sei que a gente vai conseguir sair dessa”, afirma.

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