‘Eles eram inocentes’: famílias contestam relatório da PM sobre morte de jovens em Londrina

Kelvin dos Santos, 16, e Wender da Costa, 20, foram mortos por policiais militares em Londrina, no norte do Paraná, em 15 de fevereiro deste ano. Dois meses depois, familiares dos jovens contestam a conclusão do inquérito da Polícia Militar do Paraná (PM-PR), que considerou as mortes como resultado de legítima defesa. Para as mães, a versão oficial esconde uma execução, e a investigação conduzida pela própria corporação não garante imparcialidade.

Segundo o documento, houve “indícios de crime”, mas sem que isso configurasse transgressão disciplinar. “Há elementos suficientes que comprovam a excludente de ilicitude, pelo fato de terem efetuado os disparos de arma de fogo em legítima defesa e em estrito cumprimento do dever legal”, diz trecho do relatório. A conclusão consta no inquérito militar finalizado em 23 de abril, e já protocolado junto ao 3º Comando Regional da PM.

A investigação, conduzida internamente pela PM, aponta que os depoimentos dos policiais coincidem com imagens coletadas no local e com as perícias realizadas. O inquérito será agora encaminhado ao Ministério Público do Paraná (MP-PR), que pode solicitar nova análise, e, em seguida, à Justiça Militar Estadual. Ainda não há previsão de sentença. Após um período de afastamento para acompanhamento psicológico, os policiais envolvidos retornaram ao serviço.

Famílias denunciam parcialidade

Os familiares de Kelvin e Wender rejeitam a versão oficial e denunciam parcialidade nas investigações. Alegam que os jovens não estavam armados e utilizavam um carro emprestado de um lava-rápido onde Kelvin trabalhava.

“Já esperávamos esse resultado pelo fato de serem policiais investigando policiais. A advogada e nós, da família, sabíamos que isso poderia acontecer”, afirmou Vanessa Pereira da Costa, mãe de Wender. “Mesmo esperando, foi um choque. Ficamos abaladas. Queremos justiça.”

Vanessa questiona a quantidade de disparos, o boletim de ocorrência da própria PM aponta que foram efetuados 18 tiros. “Tantos tiros em ‘legítima defesa’ de quem?”, disse.

Ela também relata casos de intimidação na comunidade após as mortes. “Passam com farolete nas câmeras que colocamos para nossa segurança. Já houve casos de agressão. Somos ameaçados, mas sem provas, não conseguimos denunciar.”

A mãe de Kelvin, Sirlene, também contesta a versão da PM. “Nós sabemos da inocência deles. Queremos que a verdade apareça.”

O deputado estadual Renato Freitas (PT) criticou o inquérito. “É praticamente a própria PM dizendo que a PM não tem culpa. Isso é uma defesa dos assassinos. Continuaremos acionando o Ministério dos Direitos Humanos e outros órgãos para que deem respostas. O caminho da mentira leva à morte. A luta pela verdade é a luta pela vida.”

O Centro de Direitos Humanos de Londrina também lamentou o desfecho. “Continuaremos lutando com as famílias e comunidades com ações contundentes, que visam acabar com essa mazela que assombra as juventudes periféricas de Londrina e região”, afirmou o coordenador da entidade, Alisson Poças.

Relembre o caso

Kelvin e Wender foram mortos por volta das 22h30 do dia 15 de fevereiro, na rua Belmiro de Oliveira, próxima à BR-369, no bairro Jardim Nossa Senhora da Paz, também conhecido como Bratac. Os dois trabalhavam juntos em um lava-rápido e numa barbearia fundada por Wender.

De acordo com a versão da PM, a equipe do Choque avistou um carro com características semelhantes ao usado em furtos na região. “Na tentativa de abordagem, houve reação por parte dos suspeitos, o que culminou em confronto armado”, diz o boletim de ocorrência.

PM do Paraná está entre as mais letais do país

Casos como o de Kelvin e Wender não são isolados. A Polícia Militar do Paraná figura entre as seis mais letais do país há quase uma década, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De 2015 a 2023, a média anual foi de 332 mortes. Em 2022, o número chegou a 479. Em 2023, foram 341.

Familiares de vítimas relatam que, em muitos casos, não foram realizados exames residuográficos — que detectam vestígios de pólvora nas mãos — nem outras perícias básicas. Há denúncias de corpos lavados, roupas incineradas e impedimentos ao reconhecimento das vítimas.

A legítima defesa é frequentemente usada como justificativa, mas é contestada por inconsistências nos relatos, excesso de disparos e tiros em regiões vitais. A maioria dos inquéritos se arrasta por anos sem desfecho.

Em nota, a Secretaria de Segurança do Paraná afirmou que as forças policiais seguem “protocolos rigorosos para o uso da força”, que armas de fogo são “último recurso” e que a corporação “não tolera desvios de conduta”. Segundo a pasta, denúncias contra policiais são analisadas pela Corregedoria-Geral da PM.

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