O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela anunciou que realizará pela primeira vez, as eleições para governadores e deputados em 24 estados do país em 25 de maio. O ineditismo está na participação de Essequibo, província parte da Guiana, mas historicamente disputada entre venezuelanos e guianenses que, neste pleito, escolherá representantes da região junto a Caracas.
O governo anunciou que serão 8 deputados representando o Essequibo na Assembleia Nacional. Os eleitores também escolherão um governador. A decisão de incluir o Essequibo na votação, no entanto, não foi acompanhada de detalhes e vários pontos ficaram sem resposta nesse processo.
O primeiro é o número de eleitores. Não há um registro formal desses votantes junto ao CNE, já que o anúncio da votação no Essequibo foi feito em abril. A região tem cerca de 100 mil habitantes, segundo o último censo realizado em 2012, de um total de 745 mil que vivem no país. O CNE não informou quantos desses guianenses estão habilitados para votar já neste pleito.
Outra questão que não foi divulgada pelo governo são as zonas eleitorais. Faltando pouco mais de 20 dias para o pleito, o CNE não anunciou quantas serão as urnas na região, as zonas, nem os colégios eleitorais. O número de cidades que participarão do pleito também não foi definido pelo governo, o que leva ao principal problema para depois do pleito: a ocupação deste território.
No anúncio, o governo indica que o Essequibo terá uma divisão administrativa com oito deputados para a Assembleia Nacional representando a região, além do governador. Com isso, serão 285 congressistas para o próximo mandato. O espaço, no entanto, é alvo de uma disputa histórica entre a Guiana e a Venezuela e, para isso, será necessário ocupar um território que hoje está sob controle do governo guianense.
A eleição no Essequibo se apresenta para o governo venezuelano como um desafio não só político, mas econômico e militar. Primeiro porque será necessário implementar um novo sistema administrativo na Venezuela, que terá que criar uma série de prefeituras, além de uma assembleia própria para o estado. Isso tudo também envolve um custo de implementação. E, por último, há uma tensão que envolve também uma disputa que pode ser militar na região.
Para a realização do pleito, o governo usa como argumento um referendo realizado na Venezuela que aprovou a incorporação do Essequibo como um estado venezuelano. Depois, o presidente Nicolás Maduro promulgou a “Lei Orgânica pela Defesa da Guiana Essequiba”, que pretendia oficializar a decisão tomada em referendo para tratar o território do Essequibo como um estado venezuelano.
O texto determina um período transitório para a incorporação, até que fossem realizadas as eleições para escolher um governador para o novo estado. Até lá, o território seria legislado pela Assembleia Nacional venezuelana. A lei determina também que a Venezuela escolherá um chefe de governo que funcionará provisoriamente em Tumeremo, no estado venezuelano de Bolívar (sul), perto da fronteira com a área em disputa.
O site do CNE também está fora do ar desde a disputa eleitoral de 2024, que teve Nicolás Maduro eleito para um terceiro mandato como presidente. O órgão eleitoral alega ter sofrido um ataque hacker e que, por segurança, a página estaria fora do ar. O Brasil de Fato apurou que uma possibilidade é que a votação dos oito representantes e o governador seja feita por todos os venezuelanos e que não seja efetivada a formação desses espaços de poder no Essequibo antes da resolução da disputa territorial.
Em um primeiro momento, Rodríguez Cabello foi escolhido como autoridade do Essequibo. Ele é militar e deputado, mas foi substituído por Neil Villamizar, almirante das Forças Armadas e que hoje é o candidato do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) a governador de Essequibo. O próprio governo venezuelano abriu um escritório do Serviço Autônomo de Migração e Estrangeiros (Saime) em Bolívar para registrar os cidadãos, mas não disse como estão os trabalhos.
Ainda que o CNE não tenha divulgado o número de eleitores registrados, outros 3 candidatos também vão concorrer a governador da região. O internacionalista Julio Cesar Pineda pelo Movimento Republicano, o sociólogo Héctor Milano pelo Cambiemos; e o advogado Alexis Duarte, que concorre pela coligação Un Nuevo Tiempo-Única, grupo liderado pelo governador de Zulia, Manuel Rosales, e pelo opositor Henrique Capriles. Esse grupo rachou com a Plataforma Unida, coalizão da ex-deputada ultraliberal María Corina Machado.
Para o sociólogo e professor da Universidade Central da Venezuela (UCV) Atílio Romero, a participação do Essequibo nessas eleições cria mais dificuldades para a oposição, que já não tem mostrado uma articulação para os outros estados.
“O grande problema que os diferentes setores da oposição têm é que precisam ter candidatos a 24 governadores, suplentes, tem que ter muitos candidatos para diferentes zonas. Além disso, tem a Assembleia Nacional. E isso o governo, o Grande Polo Patriotico e seus aliados já tem coberto desde o começo. Essa primeira operação eleitoral está, vamos dizer, estruturada quase em função da vitória do governo”, disse.
As eleições no essequibo, no entanto, terão um custo operativo importante para o governo. Além de uma questão geopolítica, o governo terá que encampar um processo eleitoral em um território que é pouco povoado e, depois, criar toda uma gestão governamental e municipal nesta área.
“O curto espaço de tempo é uma dimensão importante. As eleições vão acontecer muito em breve. Mas essa eleição também terá um ponto novo e fundamental para a dinâmica interna política e de administração pública da Venezuela. O país realizará um pleito pela primeira vez no território do Essequibo, área alvo de uma disputa histórica entre Guiana e Venezuela”, afirmou Romero.
Para o deputado e dirigente nacional do PSUV Julio Chávez, será necessário também uma mobilização política na região para implementar alguns dos principais projetos do governo bolivariano: as comunas.
“Isso supõe recurso, supõe desenvolver políticas públicas no Essequibo. Se elege um governador e escolhemos o conselho legislativo do Essequibo, imediatamente temos que fazer todo o trabalho para criar a institucionalidade, as leis regionais de acordo com a particularidade do território. Claro que vamos impulsionar e promover o que tem a ver com os conselhos comunais, as comunas e tudo isso deverá ser direcionado de maneira sistemática e planificada por parte do Estado para que o território e os moradores do Essequibo possam ser parte integral da República”, afirmou.
Ricardo De Toma é pesquisador pelo programa Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima e autor do livro Os interesses Geopolíticos do Brasil na Guiana Essequiba. Para ele, como o governo não deu detalhes de onde será exercido o governo do Essequibo, essa medida acaba sendo mais simbólica que prática. Ele afirma também que, como há dois Estados que reivindicam a soberania sobre a região, isso demandaria uma disputa militar.
“Esse movimento de Caracas é pouco mais do que um ato simbólico. Não vejo a probabilidade de que seja materializado em ato a nomeação de um representante que possa aplicar atos jurídicos, realizar obras, medidas administrativas e garantir a autoridade sobre um território. Porque falar disso é preciso garantir a soberania, o que significa garantir que não exista outro ator soberano. E esse é o conflito que está dado hoje, uma disputa entre dois entes que se consideram soberanos sobre o território”, afirmou ao Brasil de Fato.
No mês passado, o governo da Venezuela denunciou a presença de navios militares da Guiana no Bloco Stabroek, que fica na costa do Essequibo, zona em disputa entre os dois países. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores afirma que essa é uma zona na qual a Venezuela “mantém direitos históricos” e que, agindo dessa forma, a Guiana coloca em risco a estabilidade da região.
Esta é a 2ª vez que Guiana e Venezuela trocam acusações somente em 2025. No começo de março, a Venezuela colocou dois navios militares na costa da Guiana, que levou a uma troca de notas diplomáticas. Os próprios Estados Unidos denunciaram essa ação e ameaçaram a Venezuela. O departamento de Estado chegou a dizer que mais ações como essa “resultariam em consequências graves” para Caracas.
CIJ tenta interferir
A Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu uma medida cautelar determinando que a Venezuela não realize eleições no Essequibo. O pedido havia sido feito pela própria Guiana depois do anúncio da realização do pleito na região.
“Enquanto aguarda uma decisão final sobre o caso, a República Bolivariana da Venezuela se absterá de realizar eleições ou se preparar para eleições no território disputado, que a República Cooperativa da Guiana atualmente administra e exerce controle sobre”, afirma a decisão da CIJ.
As decisões da CIJ são vinculativas, mas a Corte não tem ferramentas para que elas sejam cumpridas, já que não pode interferir na soberania dos países.
O governo venezuelano rejeitou a decisão e disse que não reconhecerá nenhuma medida da CIJ. Em nota, Caracas chamou a decisão de “abusiva e intervencionista” e pediu que o governo da Guiana pare de atrasar as negociações pelo território e cumpra com o que foi assinado no Acordo de Genebra.
“A Venezuela reafirma que, fiel à sua posição histórica, não reconhece e nunca reconhecerá a jurisdição da Corte Internacional de Justiça, nem acatará qualquer decisão que ela emitir para resolver a disputa. Nada no direito internacional permite que a Corte interfira em questões que são de domínio exclusivo do direito interno venezuelano, nem busque proibir um ato soberano”, afirma o texto.
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, comemorou a decisão da CIJ. em publicação nas redes sociais, ele disse que a Corte demonstra com isso, “mais uma vez” que a posição de Georgetown em relação ao territorio “está de acordo com o direito internacional”.
Em junho de 2024, Venezuela pediu à CIJ que a Guiana volte a negociar o território de Essequibo. A ideia do governo venezuelano é que a discussão seja feita com base no Acordo de Genebra de 1966. Segundo o representante do país na ONU, Samuel Moncada, a discussão precisa ter um desfecho “efetivo, prático, aceitável e satisfatório” para as duas partes.
Disputa histórica
Os dois países se agarram a documentos e versões diferentes da história para embasar seus argumentos, levantando discussões sobre fatos que ocorreram até mesmo quando ambos os países ainda eram colônias.
Durante as guerras de independência na América Espanhola, as autoridades britânicas que então controlavam a Guiana ocuparam os territórios a oeste do Rio Essequibo, fato que só foi contestado pela Venezuela após a independência.
Anos de disputas deram origem ao chamado Laudo de Paris, resolução emitida em 1899 por um grupo independente de cinco juristas que decidiu que os domínios sobre o Essequibo eram britânicos. 50 anos depois, em 1949, a Venezuela alega que o laudo deveria ser anulado pois haveriam provas de um suposto conluio entre advogados do Reino Unido e um dos juízes que participou do processo.
No entanto, uma denúncia formal pedindo a anulação do Laudo de Paris só foi apresentada por Caracas em 1962, processo que iniciou a elaboração e posterior assinatura dos chamados Acordos de Genebra, em 1966. No documento, assinado meses antes da independência da Guiana pelas três partes – venezuelana, britânica e guianesa – o Reino Unido reconhece a reclamação da Venezuela sobre o território e se compromete a negociar diretamente com o país na busca por uma solução.
O prazo limite para um acordo definitivo sobre o Essequibo era de quatro anos, período que foi esgotado em 1970 sem uma resolução final e que culminou na assinatura do chamado Protocolo de Porto Espanha, no qual a Venezuela concordou em uma espécie de “trégua” de 12 anos nas reivindicações sobre o território.
Já em 1982, Caracas voltou a exigir controle sobre o Essequibo, sempre se apegando aos Acordos de Genebra. O governo da Guiana, por sua vez, alega que o Laudo de Paris ainda é valido e que, portanto, suas fronteiras estão delimitadas e incluem o território do Essequibo.
Negociações entre Caracas e Georgetown medidas pelo secretário-geral da ONU ocorrem desde os anos 1990, mas foi após as descobertas petroleiras de 2015 que o tema passou a ser tratado com mais ênfase pelos países. Em 2018, alegando a ausência de concordância das partes, o secretário das Nações Unidas, António Guterres, recomenda que o caso seja levado à Corte Internacional de Justiça (CIJ), ato que foi referendado pela Guiana e é contestado pela Venezuela até hoje, por não reconhecer a legitimidade do Tribunal em Haia sobre a questão.
Disputa recente
No final de 2023, o governo venezuelano realizou um referendo para incorporar o território à Venezuela de maneira definitiva. A proposta surgiu depois de novas descobertas de petróleo na bacia do Essequibo e passou a ser encarada como prioridade, já que este território é reivindicado há um século pelos venezuelanos.
O presidente Nicolás Maduro promulgou em março uma lei sobre Essequibo. A “Lei Orgânica pela Defesa da Guiana Essequiba” pretende oficializar a decisão tomada em referendo pela população no ano passado de tratar o território do Essequibo, em disputa com a Guiana, como um estado venezuelano.
O interesse dos Estados Unidos nesse território voltou com força por conta desta descoberta de petróleo. A ExxonMobil passou a demonstrar interesse em explorar as reservas que estão na costa do Essequibo e, com isso, gera ainda mais tensão nessa disputa.
Desde o referendo realizado na Venezuela para discutir uma incorporação do território do Essequibo, outros atores internacionais entraram na disputa, com ameaças dos EUA e o envio de um porta-aviões do Reino Unido para a costa da Guiana.
Em maio, uma oficial militar dos EUA também visitou a Guiana. A embaixada estadunidense no país chegou a dizer que a diretora de Estratégia, Política e Planos do Comando Sul dos EUA, Julie Nethercot, esteve na Guiana para supervisionar o “planejamento estratégico, o desenvolvimento de políticas e a coordenação da cooperação em segurança para a América Latina e o Caribe”.
Dias depois, a embaixada dos Estados Unidos na Guiana anunciou a realização de exercícios militares no país sul-americano. A representação estadunidense na Guiana afirmou que dois aviões militares dos EUA fizeram um sobrevoo sobre Georgetown e a região. O governo da Venezuela respondeu em publicações na rede social, nas quais ministros chamaram a medida de “ameaça à paz regional”.
No final de março, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, disse que o governo venezuelano terá “um dia ruim” se quiser atacar a Guiana. Em resposta, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, chamou o estadunidense de “imbecil” e disse que “ninguém ameaça” o país.
A troca de declarações começou em uma declaração de Rubio durante sua visita à Guiana. Ele se encontrou com o presidente guianês, Irfaan Ali, para reforçar o apoio dos EUA na disputa em torno do território do Essequibo.