
Defensoria e MP solicitaram interdição parcial de serviço da Prefeitura que recebe crianças em situação de vulnerabilidade. ‘Poderia listar praticamente o Estatuto da Criança e do Adolescente inteiro em termos de violação’, afirma um dos autores da ação. Espaço para acolhimento no Saica em Ribeirão Preto, SP, com paredes sujas e móveis velhos
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Móveis insuficientes para guardar roupas, indisponibilidade de profissionais para acompanhar crianças no médico ou nos contraturnos escolares, bebês internados com bronquiolite reiteradas vezes, casos de violência física e de abuso sexual entre internos.
Esses são alguns dos problemas denunciados pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público ao ajuizarem uma ação civil contra a Prefeitura de Ribeirão Preto (SP) para interditar parcialmente o Serviço de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes (Saica).
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Desde 2022 as autoridades já ajuizaram quatro ações ao apontarem irregularidades e incidentes graves no local destinado a acolher crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade por terem sido afastadas do convívio familiar.
Desde abril deste ano, o espaço, localizado no Ribeirão Verde, funciona sem ter conseguido a renovação do registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
“A gente poderia listar aqui praticamente o Estatuto da Criança e do Adolescente inteiro em termos de violação porque nós temos a violação ao direito à educação, temos violação ao direito à saúde, ao direito à convivência familiar e sanitária. Temos violação ao direito ao lazer. Temos violação ao direito à profissionalização, à dignidade sexual, integridade física, integridade psicológica. (…) Além de tudo, estar sem o registro significa nesse momento estar atuando fora do que determina a própria lei em relação a requisitos mínimos de atendimento”, afirma o defensor público Bruno César da Silva, um dos autores da ação.
Procurada, a Secretaria Municipal de Assistência Social informou não ter sido notificada sobre a ação e garantiu que, na atual gestão, tem acompanhado rigorosamente o serviço e disse que melhorias serão anunciadas em breve.
“A Secretaria da Assistência Social mantém diálogo ativo com o Ministério Público, articulando ações concretas e estratégicas para melhorar as condições do serviço.”
Paredes sujas, beliches e guarda-roupa sem portas no SAICA em Ribeirão Preto, SP
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A seguir, entenda quais são os principais problemas do serviço de acolhimento de crianças e adolescentes:
O que é o serviço de acolhimento?
O Saica é um serviço de acolhimento municipal previsto pela legislação brasileira como o local para garantir temporariamente o atendimento de crianças e adolescentes que, por algum motivo, foram afastados do convívio familiar e não têm para onde ir.
Em outras palavras, é o local onde esses jovens, de até 18 anos, permanecem até que se defina um novo encaminhamento para a família ou para a adoção por meio de um plano individual de atendimento (PIA).
“É uma criança que foi encontrada na rua sozinha, ninguém sabe quem é o pai ou a mãe e tem que arranjar algum lugar para esperar. Ela vai esperar no serviço de acolhimento até a Justiça definir a situação dela. Ou chegou a notícia de uma criança que está sofrendo maus-tratos dos pais. Ela precisa ser retirada dos pais. Ela vai ser retirada e vai ser colocada em um acolhimento”, exemplifica o defensor.
Ribeirão Preto tem duas unidades, uma com capacidade para dez pessoas e outra com capacidade para 48 pessoas, mas que chegou a atender mais de 80 e que é alvo das denúncias, segundo a Defensoria Pública.
“São crianças que já são vítimas de negligência, violência no âmbito doméstico. São retiradas pelo Estado exatamente para serem protegidas e infelizmente o que tem acontecido é que no espaço onde elas deveriam estar sendo protegidas, elas tão tendo direitos violados novamente.”
Porta e tampa de vaso sanitário quebrados no Saica em Ribeirão Preto, SP
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Por que o registro não foi renovado?
O funcionamento dessas unidades, segundo o defensor público, está sujeito a uma série de autorizações, entre eles um registro que deve ser emitido e renovado a cada dois anos pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), de acordo com o que o próprio ECA define.
No caso do Saica do Ribeirão Verde, esse registro deveria ter sido renovado no início de abril, mas isso não aconteceu porque a instituição não obteve um atestado de qualidade e eficiência do Ministério Público e do Conselho Tutelar, que são obrigatórios.
“O registro não foi renovado junto ao CMDCA exatamente pela inadequação do atendimento. (…) O CMDCA não registrou, não renovou o registro do serviço, e por isso ele está ilegal, irregular desde o dia 1º de abril deste ano, quando então acabou a autorização para funcionamento. Então é um serviço que está funcionando, segue funcionando, mas que está funcionando de forma ilegal porque não tem registro”, afirma Silva.
Superlotação e falta de profissionais
A não renovação do registro, segundo as autoridades, é reflexo de uma série de problemas que a instituição vem apresentando ao menos desde 2022. O principal deles é a superlotação do espaço e um número de profissionais abaixo do recomendado.
Brinquedos quebrados, mato alto e superlotação são alguns dos problemas encontrados no SAICA em Ribeirão Preto, SP
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O Saica foi projetado para acolher 48 crianças e adolescentes, mas já chegou a receber mais de 80, de acordo com a Defensoria. Em maio, estava atendendo 71 pessoas.
Com esse número, por exemplo, na ação, os denunciantes também alegam que, com base no que é definido pela resolução 130,2005 do Conselho Nacional De Assistência Social (CNAS), o local deveria ter ao menos três 3 coordenadores, 6 profissionais para atendimento, 10 educadores por turno, 10 auxiliares de educadores por turno, mas o número não chega a um terço do recomendado, segundo a Defensoria.
Casos de violência entre os internos
É dessa superlotação que ocorrem outros problemas, entre eles episódios de violência física e de abuso sexual entre internos, justamente por falta de supervisão. Um desses casos é de uma menina que chegou a ser esfaqueada por um colega da mesma idade. A Defensoria não dá detalhes do caso, em segredo de Justiça, mas confirma que a vítima não teve ferimentos graves.
“São situações que aconteceram dentro do serviço entre criança e adolescente e, é, por conta das das questões principalmente envolvendo saúde mental, que muitas vezes falta esse acompanhamento mais próximo. Não tem a equipe de referência, não tem a equipe próxima, são poucos funcionários para atender muita gente, faz com que essas situações cheguem a esses pontos mais críticos.”
A Defensoria também menciona episódios de abuso sexual que vitimaram dois meninos, uma criança e um adolescente. Esses casos já foram alvos de uma ação civil pública que, recentemente, conseguiu a aprovação dos depoimentos como provas para futuras ações de reparação.
“Não houve situação de violência sexual exposta em relação a funcionários e crianças e adolescentes, é uma questão entre internos. Essa foi uma uma denúncia que chegou pra gente em 2023, foi acompanhada ao longo de 2024 e é uma prova que já foi homologada em juízo agora em abril desse ano.”
Saídas bloqueadas de salas que viraram depósitos e falta de extintores de incêndio no Saica em Ribeirão Preto, SP
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Falta de acompanhamento escolar e bebês doentes
O serviço de acolhimento não apenas serve para dar abrigo provisório a crianças e adolescentes, mas também para garantir que esses internos continuem a frequentar a escola e o atendimento médico como se estivessem em casa, com suas famílias.
Mas, por insuficiência de profissionais, de acordo com a ação, não é isso que acontece com quem vive no Saica.
Uma das irregularidades apontadas pela Defensoria é que muitos dos estudantes não conseguem frequentar os horários de contraturno escolar, com atividades extras, ou mesmo consultas médicas.
Outra situação que os autores da ação associam à falta de cuidado é uma crise de bronquiolite que afetou crianças que estavam sob os cuidados da instituição. Uma delas precisou ser internada mais de uma vez.
“Chegamos a ter criança com com com reiteradas internações. A gente tem notícia de mais de quatro de uma única criança, um bebê de sete meses.”
Camas de crianças e adolescentes sem colchões em quarto com paredes sujas no Saica em Ribeirão Preto, SP
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Nas vistorias realizadas, os representantes do MP e da Defensoria também encontraram:
remédios vencidos;
armazenamento irregular de extintores;
vasos sanitários com tampas quebradas nos banheiros;
espaço insuficiente nos quartos para armazenar roupas e pertencentes dos abrigados
armários sem portas;
colchões avulsos, que indicam que nem todas as crianças dormem em camas.
Quantas ações foram ajuizadas até agora?
A Defensoria Pública contabiliza quatro ações civis públicas entre 2022 e 2024, com o Ministério Público, por conta de irregularidades no serviço de acolhimento em Ribeirão Preto. São elas:
Problemas estruturais: em 2022, uma ação conseguiu procedência parcial da Justiça ao reconhecer ausência de documentos como alvará do Corpo de Bombeiros;
Violência sexual: em 2023, o MP e a Defensoria entraram com uma ação para homologar escutas especializadas de vítimas de abuso sexual no Saica. Os depoimentos foram reconhecidos pela Justiça.
Falta de planejamento: em 2024, o MP questionou a falta de planos individuais de atendimento (PIAs), documentos que ajudam a definir que medidas serão tomadas para o encaminhamento das crianças e adolescentes acolhidos pelo Saica. Essa ação ainda aguarda um parecer da Justiça.
Falta de registro no conselho: a mais recente, ajuizada esta semana, questiona a falta de renovação do registro do Saica junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança. Em caráter de urgência, a ação pede que o Saica esteja proibido de receber mais pessoas, além de ser obrigado a tomar providências para melhorar as condições de quem já é acolhido hoje, como o aumento de funcionários e a retomada de atendimentos de contraturno e consultas médicas.
Que providências a Prefeitura tomou com relação ao local?
Segundo a Defensoria Pública, antes do ajuizamento da ação mais recente, várias reuniões foram realizadas com representantes da Prefeitura, que se prontificou em tomar providências, mas não deu prazo.
“Ela informa que vai vai tomar eventuais providências, mas nós não sabemos nem quando nem quais providências seriam eventualmente essas exatamente.”
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