Em menos de um ano, dois indígenas são marcados com ferro em brasa em ilha de criação de gado no Tocantins

Em menos de um ano, uma criança e um adolescente indígenas foram vítimas do mesmo tipo de violência na Ilha do Bananal, no Tocantins. Eles tiveram a pele queimada com ferro em brasa, instrumento usado para marcar bois. Em nenhum dos casos os autores foram, até o momento, responsabilizados pela Justiça.

A agressão mais recente aconteceu no dia 28 de abril. O adolescente de 15 anos ajudava o tio na lida com o gado, atividade comum na região. O jovem e o tio seguravam uma bezerra para que um vaqueiro fizesse a marcação no animal, prática usada para identificar os rebanhos.

O homem fez a marcação na bezerra e, em seguida, repetiu a ação nas costas do adolescente que só contou para a mãe sobre a violência horas depois, quando as bolhas começaram a aparecer.

Pele do adolescente ficou marcada com um número 5 – Arquivo pessoal

“A gente levou o menino da cidade. Ele passou por uma consulta médica e foi avaliado que teve a queimadura de segundo grau”, conta Sônia*, mãe do jovem. Além da cicatriz na pele da vítima, o crime deixou marcas emocionais na família. “Eles não têm noção do que eles fizeram com a minha família, com o meu marido… Meu esposo não tá bem devido à situação. Isso mexeu muito”, diz a mãe do jovem. “Ninguém vai chegar numa pessoa e fazer o que eles fizeram assim do nada, né? Então, eu acredito que tem preconceito, tem raiva”.

A mãe do adolescente lamenta que, ainda hoje, quase um mês depois do crime, nenhum dos envolvidos tenha sido chamado à delegacia. Nem a vítima foi ouvida pela polícia

O agressor saiu da ilha a pedido dos indígenas e está impedido de retornar à área. O caso foi registrado na delegacia de polícia de Formoso do Araguaia (TO) como lesão corporal dolosa.

“A Delegacia de Polícia de Formoso do Araguaia, após o exame de corpo delito, instalou inquérito para apurar a autoria do crime praticado contra o adolescente indígena”, informa Lusmar Soares Filho, procurador especial, que trabalha junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Segundo o procurador, a Funai, através da Procuradoria Federal Especializada, está acompanhado o caso e pedindo rigor nas investigações.

Outro caso

Em outubro de 2024, um menino de apenas 6 anos teve o braço marcado com ferro em brasa. De acordo com informações da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DP-TO), a criança estava brincando na aldeia quando um homem cometeu o crime.

“O acusado trabalha como encarregado de fazenda cuidando da criação de gado na ilha, são conhecidos no local como retireiros”, relatou a defensora pública Letícia Amorim. “Ficamos consternados e muito apreensivos com a situação, que pode se configurar como tortura e uma forma de subjugação dos indígenas em relação aos não indígenas”, disse, em informação prestada ao site da defensoria do estado.

A decisão da Justiça atende a um requerimento de Medidas Cautelares Penais do Ministério Público do Estado do Tocantins (MPTO) e proíbe o acusado de se aproximar da vítima e de seus familiares, devendo manter uma distância mínima de 300 metros.

A reportagem do Brasil de Fato tentou contato com a delegacia local, mas não obteve retorno. O email voltou e as ligações não foram atendidas. O espaço segue aberto para manifestações.

MPF pede retirada do gado

A Ilha do Bananal, maior ilha fluvial do mundo, fica entre os rios Javaé e Araguaia, nas divisas do estado do Tocantins com Goiás e Mato Grosso. A área é habitada por indígenas Karajá, Javaé e Avá-Canoeiro. E, também, por muitos bois.

Parte do gado pertence aos indígenas, mas muitos animais são dos rebanhos dos arrendatários, pessoas de fora da ilha que usam aquelas terras para a prática da pecuária.

De acordo com informações da Agência de Defesa Agropecuária do Governo do Tocantins, em 2019, o rebanho total vacinado na Ilha do Bananal foi de 116.796 bovinos, distribuídos em 344 retiros. Desses, 20.730 animais, ou 17,75%, pertenciam aos indígenas. Informações recentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) indicam que a quantidade de bois continua em torno de 100 mil cabeças de gado.

Localizada na Amazônia Legal, Ilha do Bananal é a maior ilha fluvial do mundo – Fernando Alves/Governo do Tocantins

Em 2024, um incêndio devastou a área da Mata do Mamão, onde há registro de indígenas isolados. Anos antes, em 2021, a área já havia sido arrasada pelas chamas.

“Essa questão do fogo está muito relacionada aos arrendamentos”, explica Marcelo*, agente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Porque os arrendamentos são para gado, né? E o pasto lá é uma pastagem nativa. Então, é uma prática comum dos criadores de gado colocar fogo para brotar a pastagem, e esse fogo, ultimamente, tem se tornado incontrolável”, diz.

Em dezembro do 2024, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que todo o gado de posse de pessoas não indígenas fosse retirado da ilha até agosto de 2025. Entretanto, de acordo com o órgão, lideranças indígenas solicitaram uma reunião para a definição de nova data, alegando tempo insuficiente e questões econômicas, além de discutirem alternativas de geração de renda. Depois das tratativas, o novo prazo foi definido para dezembro de 2025.

“Isso já é um processo histórico, antigo, [o gado] já foi tirado uma vez, voltou”, diz Marcelo. No início dos anos 2000, mais de 90 mil cabeças de gado foram removidas da área habitada pelos indígenas. “E esses crimes aqui contra essas crianças e adolescentes estão acontecendo nesse clima que está agora, de discussão sobre o arrendamento”, diz o agente.

Ele ressalta que o Cimi tem, há anos, acompanhado as populações da área e se posicionado contra o arrendamento das terras indígenas. “Porque isso tem sido bastante prejudicial, tanto ao meio ambiente, quanto à população indígena”.

*Nomes alterados a pedido dos entrevistados, por questão de segurança.

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