“Se um dia a morte maleva/ Me dá um pealo de cucharra/ Numa saída de farra/ Me faça torcer o alcatre/ Me ajeitem bem sobre um catre/ Me tirem o laço das garras”.[1] Não se foi Mujica para o paraíso ou para o inferno, ele ocupou sua vaga no plano reservado aos ancestrais que se tornam imortais em nossa memória. Está junto daqueles que amaram seu povo e sua terra. Deve andar montado em algum flete que já foi matungo a zanzar no céu ao reverso, campeando lembranças. Na sombra de seu espectro, a companheira Manu, de três patas. Mas, chê, quanta imagem campeira?!
Pois é, ocorre que, quando li de Mujica essas suas palavras “Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade”, me lembrei do livro de Ondina Fachel: Os Gaúchos. Ela, Ondina, como uma antropóloga que faz pesquisa de campo, se foi para a fronteira e acampou em algumas estâncias, lá pelos anos 1980, para ver se o tal de gaúcho ainda existia. E ela os encontrou e passou um par de anos com eles, observou de perto essa rara espécie.
Quando falo de gaúchos, não me refiro a nós urbanos que somos gaúchos só no gentílico, mas àqueles trabalhadores montados que navegam na pampa atrás do gado. Falo daqueles que viviam, ou vivem, em sóbrios galpões. Ondina descobriu que eles tinham um princípio que lhes era caro: nunca ter mais coisas do que pudessem carregar na carona de seu cavalo. Assim, se por alguma razão, eles se fartassem da paisagem ou do patrão, encilhavam o pingo e se iam a la cria. Essa busca por uma vida leve, desembaralhada das tralhas impostas pelo consumo, era a maneira que tinham de manter a sua liberdade, mesmo método professado por Mujica.
Desconfiado dessa coincidência, consultei compadre meu Knierim que, além de quaraiense, é abuello de un par de uruguayos. Talvez por ser da fronteira e ter começado lá sua militância, é conhecedor da esquerda uruguaia e das coisas de gaúchos. E disparou revelações. Segundo ele, o Movimento de Participação Popular (MPP), grupo político do Mujica, nunca permitiu que a cultura gaúcha, que é essencialmente popular, fosse monopolizada e deturpada pela direita e pelo latifúndio.
Knierim relata que o jornal do MLN – Tupamaros se chamava “Mate Amargo” e tinha como mascote um índio charrua tomando um mate sentado num crânio de vaca morta. O jornal era dividido em cevaduras[2]: cevadura política, cevadura de economia, cevadura cultural etc. El Pepe Mujica, como los gaúchos y la mayoria de los uruguayos, estava sempre com seu mate e uma garrafa térmica metida debaixo do braço. Usava roupas muito simples e com frequência, no rigoroso inverno uruguaio, ostentava uma boina basca muito usada por los gauchos daquele país.
Às vezes o que se lê, ou é dito, sobre Mujica dá a impressão de que ele era um Gandhi latino, ledo engano. Mujica era bondoso e amava a natureza e as pessoas simples, mas, como bom gaucho[3], não era nem pacifista nem religioso ou tão pouco vegano. Ele dizia “Deus não existe, mas espero estar errado”, o que me parece uma versão do que dizia o gaudério Martin Fierro[4] “No creo en brujas pero que las hay, las hay”. Pepe foi guerrilheiro e trocou tiros com a polícia na Tomada de Pando. Preso, pegou 14 anos de cana, 1972 a 1985, dos quais cumpriu boa parte isolado e sem direito a livros, como forma adicional de tortura. Na cadeia, perdeu de participar do justiciamento, levado acabo por seus companheiros Tupamaros, de Dan Mitrione[5], um Cthulhu gerado nos porões da CIA.
Mesmo depois, com a redemocratização do país, vendo que o caminho não era mais a guerrilha e abraçando a luta no espaço institucional, não nutria apegos ao pacifismo. O já pacífico Mujica surpreendeu a todos ao fazer um desabafo, em 2017, no programa La mirada, do canal uruguaio VTV, contra a campanha de calúnias que sofreu quando foi presidente: “hay cosas que se arreglan así, no se arreglan de otra manera… Porque cualquier mequetrefe dice cualquier cosa y la ley de prensa lo ampara,”[6] e não deixou barato, “No puedo agarrar la espada porque soy un viejo pero por lo menos a los tiros, capaz que ando“[7]. Mas ele concordava com seu par indiano, com sua fé num bom futuro, no amor e na humanidade.
Lendo sobre a história de Artigas e a formação do povo oriental, como um grupo distinto ao da banda Ocidental (Buenos Aires), vemos que a sua base social era os pobres do campo, os indígenas e los gauchos. Foram eles que, na agrura das peleias, contra os espanhóis, argentinos, portugueses e brasileiros, forjaram, no fogo da luta anti-colonial, sua identidade nacional. Então, a manutenção dessa cultura como parte da identidade guerreira da esquerda uruguaia é mais que lógica à manutenção de ancestralidade e ao pertencimento.
Cônscio e prenhe da importância desse legado, Pepe Mujica encomendou, para sua posse como presidente em 2010, aos Los Olimareños que cantassem a milonga A don Jose. Com fascínio, cantaram milhares de uruguaios com faixas presidenciais no peito, na Praça Independência, nesse dia inesquecível. Mujica sabia que, como o outro José, sua função também era a de Protetor do Povo, como diz seu amigo Lula: “a minha causa é cuidar do povo”.
A mesma milonga A Don José Artigas, que serviu a glória de sua posse, serviu de despedida no dia do seu enterro. Os Orientais outra vez reunidos, mas com sentimento diverso, saudaram el gaucho Mujica com a melodia pampeana nascida da garganta de seus ancestrais, uma milonga que já se transformou num hino da Frente Ampla. Com certeza, cumpriu seu dever e demonstrou a todos como fazer, e a música grita o desígnio “con libertad/ no ofendo ni temo/ Que Don José/ Oriental en la vida/ y en la muerte también/ (…) de fogón en fogón/ se oye la voz/ Si la patria me llama/ aquí estoy yo”.
* Giovanni Mesquita e Claudio Knierim são historiadores.
** Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.
[1] “Último pedido”, poema de João da Cunha Vargas, musicado por Vitor Ramil
[2] Um punhado de erva mate com água quente que é usado para o preparo do mate (chimarrão).
[3] A palavra gaúcho, em espanhol, não tem acento.
[4] Martín Fierro de José. Hernández. Hernández escreveu esse livro em 1871/72, com um pé no Brasil e o outro no Uruguai. O autor coloca na boca de seu personagem, um gaúcho originário, esse dito da tradição popular espanhola.
[5] Essa história é maravilhosamente contada no filme Estado de Sítio (1972), de Costa-Gravas.
[6] https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/uruguay-pepe-mujica-quiere-que-vuelvan-los-duelos-para-resolver-las-cuestiones-de-honor-nid2034209/
[7] https://www.elpais.com.uy/informacion/mujica-lamenta-que-no-exista-ley-de-duelo-hay-cosas-que-se-arreglan-asi. A lei de duelos só foi revogada no Uruguai nos anos noventa do século XX.