Cartografar para resistir: Comunidade quilombola da Matinha dos Pretos constroem mapa social do território

Acoma - Matinha dos Pretos - Quilombolas
Foto: Arquivo Pessoal

“O trabalho não é meu, é delas.” Com essas palavras, a professora e pesquisadora Maiane Cerqueira de Azevedo sintetizou a essência de um projeto que é, antes de tudo, coletivo, ancestral e profundamente territorializado. No último 1º de maio, foi entregue oficialmente à comunidade quilombola Matinha dos Pretos, em Feira de Santana, o etnomapa social do território, resultado de uma pesquisa participativa e transformadora desenvolvida ao longo de 2023.

O trabalho foi coordenado por Maiane como parte de sua dissertação de mestrado no programa de Planejamento Territorial (PlanTer) da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Mais do que uma exigência acadêmica, o estudo nasce do chão da comunidade quilombola, com protagonismo das mulheres e jovens da Acoma (Associação Comunitária da Matinha), uma das mais antigas e atuantes associações de Feira de Santana, cuja diretoria é inteiramente feminina.

Durante a palestra de entrega, na sede da Acoma, Maiane fez questão de devolver também o rascunho inicial — emoldurado — às mãos de Das Neves, uma das moradoras que participou ativamente da construção do mapa. O gesto simbólico reafirma que esse processo vai além da cartografia: é reconhecimento, fortalecimento e afirmação de identidade.

Em entrevista ao Acorda Cidade, a pesquisadora detalhou a metodologia que deu origem ao etnomapa, destacando o compromisso com a autonomia da comunidade.

Acoma - Matinha dos Pretos - Quilombolas - Maiane - etnomapa
Maiane Cerqueira de Azevedo | Foto: Arquivo Pessoal

“Nessa pesquisa, nós desenvolvemos a própria abordagem metodológica da cartografia social, onde ela é desenvolvida a partir de rodas de conversa, palestras, construção de linha de tempo, oficinas. E essas oficinas foram pensadas de forma a trazer a discussão sobre o que é ser quilombola, qual a identidade que eles têm ali”, explicou Maiane.

Durante o processo, as moradoras da Matinha desenharam, a partir da memória e da vivência, um primeiro mapa mental do território. Em seguida, a equipe técnica ajustou o conteúdo utilizando imagens georreferenciadas, softwares de SIG (Sistemas de Informação Geográfica) e visitas guiadas — entre elas, com Guda Moreno, da grande banda Quixabeira da Matinha, referência na cultura do samba de roda da região.

“A cartografia tem como objetivo promover a autodemarcação, o autorreconhecimento, a autodelimitação. […] As meninas criam uma legenda com desenhos próprios, com o caminhar próprio, com a forma, com o autorreconhecimento do território, a autocartografia e culimna nesse etnomapa ”, afirmou a pesquisadora.[

Acoma - Matinha dos Pretos - Quilombolas
Foto: Arquivo Pessoal

O processo passou por duas etapas de validação: uma técnica, com a conferência dos pontos em campo, e outra simbólica e política, com o retorno do mapa ao grupo para revisões e aprovações finais. Só depois dessa construção coletiva o etnomapa foi finalizado e impresso em banner — entregue junto com a pesquisa no início de maio.

“Essa produção é da comunidade. Nós estávamos ali enquanto universidade, enquanto pesquisadora, apenas como orientadora, enquanto aquela que geria as ações para que chegasse ao resultado. Mas o trabalho é da comunidade, é da Matinha dos Pretos, é da Acoma”, reforçou ao Acorda Cidade.

Ao devolver à comunidade sua própria imagem territorial, traduzida por suas referências simbólicas e afetivas, o projeto reafirma o lugar da cartografia como instrumento de luta e afirmação. A ferramenta incentiva a comunidade a não perder suas conquistas, a afirmar sua presença e garantir que suas histórias, seus saberes e suas tradições continuem vivos e respeitados. O mapa torna visível aquilo que muitas vezes não é visto: a relação profunda e ancestral que a Matinha dos Pretos tem com a sua terra, com sua cultura e com sua identidade quilombola.

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