O pensar filosófico trilha os rumos do estar-sendo, do poder-ser assim como os do jamais-ser
ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

A linguagem da filosofia, por ser linguagem, não pode se abstrair de ter as mesmas propriedades da linguagem humana em geral. Mas está na sua natureza que ela seja o resultado de o ser humano não se contentar com o imediato. Se lembrarmos que ela, desde seu início, incorpora e define o espírito epistêmico, podemos entender o sentido dessa dínamis, dessa força imanente que a empurra fora do empírico e do imediato. Podemos, sim, determinar isto e aquilo com a linguagem comum. Podemos querer as maçãs da árvore, ou aquelas pedras para construir, ou varas para pescar. Mas o que ocorre quando queremos o que está além de toda determinação empírica? Mais ainda, quando se trata do que nem o mais avançado do nosso conhecimento consegue determinar, o que fazer para comunicar sobre o mundo que transcende o determinável? Dá-se um problema, como comunicar o que transcende a comunicação empírica? Como denotar, referir, o que está além de qualquer constatação sensível, empírica?
No início do filosofar no Ocidente, assistimos a um fato sugestivo. O primeiro filósofo, transcendendo a empeiría, quer dar um nome físico a um princípio metafísico. O que levanta a questão do verdadeiro significado de ‘água’ em Tales. O notável é que Anaximandro reage contra esse emprego de um nome determinado para algo que não poderia ser, no sentido da pesquisa, empiricamente determinado. O que leva o próprio Anaximandro a criar um termo que melhor denotasse o princípio de tudo: ápeiron. Longe de qualquer preocupação etimológica, interessa notar aqui que a necessidade de nomeação do que não pode ser empiricamente nomeado leva à criação de uma terminologia nova. Dessa forma, o filósofo se vê na necessidade de ou criar ou, então, recriar, semanticamente, antigos conceitos.
A filosofia dos pré-socráticos nos oferece aquele belo espetáculo da origem de um novo dizer. Cunhando conceitos, ou criando significados a partir de conceitos conhecidos, o filósofo antigo vê-se impelido a criar e recriar termos para pensar e repensar a totalidade. Ao ápeiron de Anaximandro somaram-se o lógos heraclítico, o eînai de Parmênides, as homeomerias de Anaxágoras e os átomos de Leucipo e Demócrito. Era o início de um processo que continuamos cada vez que queremos ultrapassar a barreira do que fora determinado pela tradição, conceitual ou problematicamente.
Somos nossos problemas e nossas soluções. Nesse sentido, somos o que criamos e que a nós mesmos criamos. O que fazemos racionalmente da realidade e o que fazemos de nós, individualmente, eticamente. Para entendermos a realidade, nas suas profundezas abissais, precisamos criar novos conceitos ou transformar os velhos.
Ao querer entender os problemas que advêm das várias dimensões do real, o filósofo precisa esclarecer para si mesmo em que realmente consistem os problemas que o afligem. Já nesse momento reconceitualiza o real. E, mesmo usando conceitos herdados, a circunstância específica em que é obrigado a pensar, o obriga a um ato de criação racional, dando a antigos conceitos novos significados. Desse modo, e na sua essência, a atividade filosófica não é mera práxis, não é uma mera ocupação, um ocupar-se com as coisas do imediato. É poíesis, é criação, elaboração, é construção. Constrói-se não só o conceito, mas recria-se a realidade que gera tal pensar. Nesse sentido, a poíesis filosófica não é, nem nunca foi, mímesis, não é mera imitação, nem se limita ao mundo que é reproduzido, copiado.
Que a linguagem filosófica não é práxis, nem uma práxis mimética, significa várias coisas. Há uma necessidade poiética, criadora, resultado do próprio agir filosofante, da própria intenção filosófica de se adentrar no ser fugindo do aparecer. É uma poiética lógica. Isto é, uma criação constante de uma outra conceitualização, de uma conceituação enriquecedora, transcendente. É uma poiética epistêmica. Cria-se um sistema conceitual adequado a entender a realidade, nessas novas dimensões, e exprimir suas verdades. É, por isso, uma poíesis ontológica, porque nomeia outras dimensões particulares do ser e outros entes. Mas, sobretudo, é uma poíesis metafísica. Pois é a totalidade do que é que está sendo pensada e recriada conceitualmente. Isso nos permite ver a diferença entre a mera fala filosófica (ou o falatório filosófico) e a fala e o dizer propriamente filosóficos. A fala e o dizer propriamente filosóficos são fruto de um pensar criativo, de um pensar originante, de uma nova forma de se apropriar e de se problematizar o ser, o real. Da necessidade de se usarem os conceitos num novo sentido ou de se criar e inventar conceitos. O próprio repensar criativo do ser recria em algum sentido o ser. Isso distingue o filósofo: ele não está para repetir à saciedade o que já foi dito e pensado ou criado e recriado por alguém. Ele, o filósofo, é partícipe desse ato de criação e recriação. Pois o que está em jogo não é o dizer alheio, o dizer do outro, mas o que o filósofo entender ser o dizer do próprio ser. Novo dizer que, para ser dito, deve ser inventado e reinventado. Assim, filosofar não é imitar, copiar, reproduzir ou meramente explicar e repetir o que já foi, ou já foi dito, mas redizer as coisas, repensá-las, re-fletir sobre o ser e descobrir as novas dimensões da poiética do ser, da poíesis do eínai, dos novos rumos do estar-sendo, do poder-ser assim como os do jamais-ser.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |
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