Não gostaria de emprestar as minhas palavras para eles. Eles, que já têm mais espaço do que merecem, mais púlpitos, microfones, tribunas. Mais câmeras que os enquadram, mais manchetes que os citam. Homens que se fazem porta-vozes de projetos que não assinam, mas sustentam o patriarcado que violenta, que saqueia a terra, que subjuga as mulheres, que sequestra a liberdade religiosa e esvazia de sentido a palavra democracia.
Eles — sempre eles — de peito estufado, falam em nome de coletivos que mascaram, com discursos de ordem e progresso, a manutenção brutal de privilégios: a bancada da bala, a da bíblia, a do agro.
Mas nós, mulheres, usamos as palavras para outra coisa. Para denunciar, sim, mas também para resistir, para tecer alianças, para dizer que estamos vivas, e que viver — para nós — nunca foi dissociado de lutar.
Há poucos meses, o senador Plínio Valério disse, em plenário, que sentia vontade de enforcar a ministra Marina Silva. Que verbo é esse que ele conjuga com tamanha naturalidade? Que desejo de linchamento é esse que, no fundo, nunca deixou de atravessar a política quando uma mulher ousa ocupar o espaço público?
Na semana passada, ele reiterou, com a sutileza que só os pequenos conhecem: “ministra, que bom reencontrá-la. E, ao olhar para a senhora, estou vendo uma ministra. Não estou falando com a mulher. Estou falando com a ministra”.
Ministra, não mulher.
Talvez, se fosse um ministro, ele não ousasse tanto. Talvez reconhecesse ali um igual, um adversário digno. Mas diante de uma mulher — e, ainda mais, uma mulher negra, de origem pobre, seringueira, nordestina, evangélica — o gesto é o de tentar confiná-la num lugar: ou só mulher, domesticada e silenciosa, ou só ministra, um cargo esvaziado de carne, história e subjetividade. A velha tentativa patriarcal de interditar o trânsito entre o público e o privado, que as mulheres são forçadas a realizar todos os dias.
Como lembra o feminismo marxista, não há neutralidade possível: nossa inserção na esfera pública é sempre marcada pelos atravessamentos da vida reprodutiva, afetiva, da sexualidade, da religião.
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Essa operação de cisão — tão primária quanto violenta — não é inédita: o patriarcado sempre tentou demarcar onde começa e onde termina a existência pública das mulheres. Não podemos transitar, não devemos ser simultaneamente o que somos. Ou nos “escondemos” no privado, nas casas, nas cozinhas, nos cultos silenciosos — ou, se ousamos o espaço público, pagamos o preço da desumanização, da objetificação, do ataque.
A tentativa é sempre essa: cindir. Separar mulher de ministra, sujeito de função, corpo de palavra. Como se fosse possível.
Com o microfone ainda desligado, Marina respondeu: “Sou as duas coisas”. Uma resposta que carrega décadas de caminhada, resistência e enfrentamento. Como poderia ser diferente?
Ninguém caminha tantos anos sem aprender que se é sempre mais de uma coisa ao mesmo tempo. Marina, que nasceu no Acre, que só se alfabetizou aos 16 anos, que decidiu, aos 20, cursar História, e que, aos 26, formou-se na Universidade Federal do Acre.
Que liderou a chapa “Seringueira” no movimento estudantil, que marchou ao lado de Chico Mendes, que é especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade de Brasília, talvez sabendo que a palavra não é só instrumento, mas também lugar de elaboração, de travessia subjetiva, de construção de um destino que não se submete à repetição.
Sua trajetória política, profundamente ética, nunca se dissociou de uma relação íntima com a terra, com o meio ambiente, com a vida — e, portanto, com aquilo que o capital patriarcal insiste em destruir e transformar em lucro.
Ela sabe — nós sabemos — que não há possibilidade de habitar a política sem carregar também os traumas e os afetos, os desejos e as interdições do espaço privado. Que ser ministra, para uma mulher, não significa anular-se como mulher, mas reinventar-se, expor-se, arriscar-se na tensão permanente entre o íntimo e o público.
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Marina caminha entre escombros que eles deixaram. Diferente desses homens que, com pouca formulação política, se escoram na visibilidade desproporcional que o patriarcado lhes concede, ela fez sua trajetória no silêncio das florestas, no rumor das seringueiras, no espaço restrito de quem aprende a ler tarde, mas aprende também a ler o mundo.
Não é sobre concordar com todas as posições que Marina ocupou, ou ocupa. Não se trata de uma adesão acrítica. A política — ao contrário do que desejam os senadores da violência — admite a divergência, a pluralidade, o dissenso.
O que não se admite mais — o que não podemos mais admitir — é que uma mulher precise ser menos do que ela é para estar na política.
Marina foi recebida, abraçada, acolhida por outras mulheres parlamentares. Mulheres que sabem que não se trata apenas de uma solidariedade afetiva, mas de uma aposta política: garantir que as mulheres possam existir, com toda a complexidade que lhes é própria, na esfera pública.
Ela foi consagrada na história. Não porque venceu uma disputa, mas porque expôs, com a serenidade que lhe é característica, a mesquinharia e a violência dos que tentam silenciá-la.
Eles ficarão, como sempre, na pilha residual da história — o lixo onde se acumulam os pequenos, os ressentidos, os que nunca souberam o que fazer com a presença de uma mulher, no público e no privado.
Nós seguimos. Com as palavras, com o corpo, com a política. Sendo mulher e o que mais nos interessar.
Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.