Foi protocolado no dia 21 de maio, na Câmara Municipal de Porto Alegre, o Projeto de Lei nº 28/2025 que autoriza a concessão parcial dos serviços do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). A proposta, de autoria do Executivo, retoma uma das principais promessas de campanha do prefeito Sebastião Melo (MDB) em seu segundo mandato.

A tramitação do projeto ocorre no mesmo momento em que a Câmara inicia os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigará o processo de desestruturação do Dmae. A comissão terá sua sessão inaugural nesta quinta-feira (5) e será presidida pela vereadora Natasha Ferreira (PT), responsável pelo requerimento de criação da CPI. O grupo parlamentar pretende apurar denúncias envolvendo corrupção, omissão administrativa e sucateamento dos serviços, com prazo inicial de 120 dias para conclusão dos trabalhos.
Para compreender os possíveis impactos da concessão, bem como os riscos à saúde pública associados ao acesso inadequado à água e ao esgotamento sanitário, o Brasil de Fato ouviu o engenheiro civil Leo Heller, ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. Ele também integra a Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e é autor do livro The Human Rights to Water and Sanitation, publicado pela Cambridge University Press.
Segundo o especialista é comum que seja criado “um ambiente de baixa qualidade da prestação de serviço para que a população tenha aderência a propostas de privatização”.
Na entrevista, Heller explica os possíveis motivos da concessão, como esse processo geralmente acontece e as consequências do acesso inadequado à água e da convivência com esgotos a céu aberto para a saúde da população. Confira na íntegra:
Brasil de Fato: Em Porto Alegre, especialmente na zona leste da cidade, uma parcela da população vive sem acesso regular à água potável e saneamento básico, apesar da cidade ser bem abastecida, recebendo água do Guaíba e do Jacuí. O que pode explicar essa disparidade na distribuição?
Leo Heller: Eu vou voltar um pouco aqui no tempo. É interessante notar o seguinte: quando houve uma modificação na estrutura institucional do saneamento, nos anos 1970 ainda, que foram criadas as companhias estaduais, todas as capitais viraram concessão das companhias estaduais. A única exceção foi justamente Porto Alegre, que foi a única capital brasileira que criou um departamento municipal. Todas as outras começaram a ser operadas pelas respectivas companhias estaduais. O Dmae sempre foi um exemplo de um ótimo serviço prestado, sempre teve um protagonismo político, e o serviço de água e esgoto de Porto Alegre sempre foram considerados muito adequados.
Eu não tenho elementos muito empíricos para dizer, mas estou confiando no que você está dizendo, de que houve uma deterioração recente. Isso é usual ocorrer quando existe uma intenção de privatizar. Cria-se um ambiente de baixa qualidade da prestação de serviço para que a população tenha aderência a propostas de privatização. Não estou afirmando que isso ocorreu, mas é muito possível que tenha sido uma motivação para que parte da cidade tenha um serviço precário.
Tecnicamente, não há nenhum obstáculo para colocar o mesmo padrão de serviço em toda a cidade
Isso não é uma exclusividade de Porto Alegre. Tem muitas cidades do país em que uma parte da população recebe serviços muito mais precários do que outras e outras são muito bem atendidas. Usualmente, essas partes da população que são mais excluídas são populações mais pobres, que vivem em alto de morro, que vivem em vilas e favelas. Mas, não necessariamente precisa ser assim, né? Isso é muito importante afirmar, porque tecnicamente não há nenhum obstáculo para colocar o mesmo padrão de serviço em toda a cidade, tanto de água quanto de esgoto. Mesmo em vilas e favelas, onde é mais desafiante.
Existem muitos bons exemplos de implantação de serviços em vilas e favelas. É mais desafiante colocar serviço nesses locais, às vezes os arruamentos não são adequados, eles não são retilíneos, são estreitos, às vezes não tem uma declividade uniforme… Mas, quando se associa o saneamento a um programa de urbanização da vila e favela, é muito possível você ter serviços equivalentes aos serviços das áreas urbanizadas de forma convencional.
Então, não tem desculpa. Um departamento com a qualidade do Dmae era de se esperar que atendesse de forma universal a cidade de Porto Alegre. A minha hipótese aqui é que pode estar havendo um desatendimento proposital para justificar a privatização. Eu não conheço em detalhes o caso de Porto Alegre, mas observa-se isso em muitos contextos.
Inclusive, foi protocolado na semana passada o projeto de lei que aborda a concessão parcial dos serviços de saneamento básico em Porto Alegre. Uma das justificativas da prefeitura para essa concessão é a falta de recursos para atingir a universalização do acesso à água potável e esgoto tratado até 2033, um dos objetivos do Marco Legal do Saneamento Básico. Existem outros casos de privatização ou concessão parcial que realmente surtiram um efeito positivo no acesso à água tratada e ao saneamento básico pela população?
A gente está vivendo uma onda nova de privatização desde 2022 com o novo Marco Legal, e algumas concessões ocorreram até um pouco antes do novo Marco Legal, com a nova lei que altera esse marco. O Marco Legal é de 2007. Então ainda é um pouco recente esse movimento. Antes de 2022, houve algumas concessões, mas não na proporção que está ocorrendo agora. Essas novas concessões vieram muito com esse argumento a que você se refere, de que existe uma crise fiscal, que o poder público não tem capacidade de investimento, então é preciso buscar recursos da iniciativa privada.
O que é que nós já estamos observando nessas novas concessões? A população com muitas queixas em relação à qualidade dos serviços, muitas queixas em relação a tarifas, posturas do prestador de serviço de corte sistemático das ligações quando não há pagamento… Um cenário que anuncia grandes problemas com a privatização.
Em outros países do mundo, tem havido muita insatisfação com a privatização dos serviços. Existe uma tendência recente muito forte em muitos países de remunicipalizar, fazer o serviço que foi privatizado voltar às mãos do poder público. Esse argumento de que o Estado não tem recurso e a iniciativa privada vai trazer novos recursos é muito frágil.
Tem estudos que mostram que a iniciativa privada, quando presta serviço de saneamento, não traz necessariamente recursos novos. Ela usa, principalmente para expandir o serviço, ou o recurso das tarifas, que o poder público também arrecada – então recolhe tarifa, cria um superávit e usa o superávit para o investimento – ou recursos de empréstimos, e muitas vezes empréstimo dos bancos públicos.
No Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) tem cumprido muito esse papel de testar. O BNDES está por trás da maior parte das privatizações que têm ocorrido no Brasil, eu diria que quase todas. E o BNDES tem feito um papel perverso, de alimentar esse discurso de que faltam recursos. Promove a privatização e depois empresta o dinheiro para o privado. Por que não empresta para o público? Fica essa pergunta. Porque é uma política muito claramente orientada para estimular a privatização.
Existe uma tendência recente muito forte em muitos países de remunicipalizar, fazer o serviço que foi privatizado voltar às mãos do poder público
E uma cidade do porte de Porto Alegre, em que você tem o serviço quase universalizado – falta muito pouco, imagino, para Porto Alegre ter 100% da população atendida por água e por esgoto, pelo histórico do Dmae – dos serviços prestados, certamente há a capacidade de arrecadar recurso por tarifa, para completar o que falta de obras para serem feitas.
Tem muitas cidades que conseguem esse equacionamento. Quanto maior o aporte da cidade, mais fácil ela ser financiada pelas tarifas arrecadadas. Então me parece um argumento frágil esse de ‘não temos recursos, precisamos da iniciativa privada para trazer recursos’. Pelos dois motivos, primeiro que tem, sim, recurso. A prefeitura de Porto Alegre e o Dmae conseguiriam alavancar recursos para universalizar. E segundo, porque não virão recursos novos da iniciativa privada, pelo que mostra a experiência internacional.
O Departamento de Água e Esgoto da cidade termina o ano no azul desde 2015, mas o diretor-geral Bruno Vanuzzi disse que esse superávit não significa que a autarquia tem um excedente, mas sim que não há a capacidade de fazer os investimentos necessários, e que se fizessem esses investimentos, ‘o superávit desapareceria’, o que parece mais um pretexto para continuar o sucateamento até atingirem a privatização. Nessas situações, é realmente melhor segurar o dinheiro e não investir em outras demandas do departamento?
Não tem sentido, não é? Porque o Dmae não é uma empresa que visa lucro, não tem que distribuir lucro para acionistas como uma empresa privada. Numa empresa pública, o superávit tem que ser integralmente utilizado nos serviços, seja na expansão, na melhoria, no aperfeiçoamento de processos. Então, não tem justificativa para não usar o superávit para ampliar a cobertura. Eu não tenho esse cálculo, mas digamos que o superávit não seja suficiente para isso: tem outra possibilidade, que é o financiamento público. Existem linhas de crédito.
Eu estou voltando do Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, e lá assisti uma apresentação do ministro das Cidades em que ele mostra que tem várias linhas de crédito no Ministério das Cidades, usando principalmente recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. E ele fala que faltam projetos. Está sobrando dinheiro, faltam bons projetos. O Dmae tem um histórico de obtenção de financiamento federal, amortiza os financiamentos da forma como deve. Por que não continuar a buscar financiamento para complementar os recursos disponíveis para investimento? Não tem justificativa.
Transferir um serviço como o de Porto Alegre para a iniciativa privada é risco de deteriorar ainda mais a qualidade do serviço e de não atingir a universalização
Outro caminho, se o superávit não é suficiente, é fazer pequenos aumentos tarifários, principalmente se não afetarem as populações de menor renda. As populações que têm condições poderiam pagar um pouco mais e isso poderia gerar um pouco mais de superávit. Esse é o arranjo que se faz normalmente. O fluxo de dinheiro é esse, o que sai da tarifa para manter o sistema, para ampliar o sistema e quando isso é insuficiente, financiamento público.
Assim que sempre operou o saneamento no Brasil, sem necessidade de passar para a iniciativa privada. Que é uma temeridade, transferir um serviço como o de Porto Alegre para a iniciativa privada é risco de deteriorar ainda mais a qualidade do serviço e de não atingir a universalização. É bom lembrar que as empresas privadas tradicionalmente tentam maximizar seus lucros e maximizar a transferência dos seus lucros para os seus acionistas, e não investir nos sistemas. Hoje não tem transferência de lucro. Se você colocar aí que 20%, 30% do superávit vai ser transformado em dividendos, ser transferido para os acionistas das empresas, fica ainda mais difícil fechar a equação.
O Dmae tem um histórico de obtenção de financiamento federal, amortiza os financiamentos da forma como deve. Por que não continuar a buscar financiamento para complementar os recursos disponíveis para investimento? Não tem justificativa
A enchente do ano passado mostrou que a cidade não está preparada para emergências climáticas. Em 2023, por exemplo, nada foi investido em prevenção a enchentes. Tendo em vista a queda de investimentos em água e esgoto e o cenário de concessão do saneamento, a situação pode ser ainda mais delicada caso uma situação como aquela aconteça novamente?
Eu estou totalmente de acordo com você, porque um dos grandes problemas de Porto Alegre na enchente foi que inundou o sistema de produção de água, as bombas, porque não funcionaram bem as comportas. E a gente tem observado isso também. As empresas privadas têm pouca preocupação com o investimento em medidas preventivas, medidas de adaptação às mudanças climáticas.
Em geral, elas são orientadas por investir naquilo que aumenta a receita, ampliar serviços para melhorar a receita e a arrecadação. Investir em melhorar a proteção da captação e medidas de adaptação não gera nova receita, então as empresas são muito relutantes em fazer isso. Mesmo quando existe uma regulação adequada, que me parece que em Porto Alegre não existe, o regulador poderia forçar as empresas, obrigar que elas invistam nessas medidas. Mas, a gente tem visto que a própria regulação tem limitações, ela não consegue fazer com que as empresas cumpram com todas as suas obrigações.
Entrando agora nas consequências desse acesso inadequado à água e da convivência com esgotos a céu aberto para os moradores, quais os impactos disso para a saúde da população?
Tem uma literatura extensa que mostra como a deficiência no saneamento pode afetar a população e provocar várias doenças. Quando você não tem um sistema de água adequado, os dois componentes são importantes, tanto a qualidade da água, porque uma água com baixa qualidade pode gerar um conjunto de doenças, como diarreia, cólera e várias outras, quanto a quantidade inadequada. Quando a quantidade é baixa, você tem um comprometimento na higiene das pessoas, e isso pode gerar também várias doenças, tanto de veiculação fecal-oral como doença de pele ou doença dos olhos, por falta de higiene. Quando não tem quantidade adequada também, a população muitas vezes precisa armazenar a água em vasilhames, o que gera criadouro para mosquito, para transmissão das arboviroses como Dengue, Chikungunya e Zika.
E com esgoto é a mesma coisa. Quando você tem esgoto a céu aberto, tem proliferação de vetores, contaminação de alimentos, contaminação da água, o que pode gerar várias e várias doenças. Tem um conjunto grande de doenças que são explicadas por um saneamento inadequado. Há estudos recentes falando que 50% da diarreia infantil ocorre devido a deficiências no acesso à água e esgoto. Está muito bem documentado isso, não tem dúvida de que o saneamento precário é um fator muito determinante para a piora da saúde das pessoas.
Quando você tem esgoto a céu aberto, tem proliferação de vetores, contaminação de alimentos, contaminação da água, o que pode gerar várias e várias doenças
Segundo os moradores da zona leste da cidade, o que sempre acontece é passarem sede e sofrerem com o calor no verão, e temer por alagamentos e enchentes nas estações mais chuvosas, o que demonstra a situação de vulnerabilidade a que essas pessoas estão expostas. Quais medidas já poderiam ter sido tomadas para amparar essa população?
Como eu disse, em geral,não tem dificuldade técnica de melhorar o abastecimento de água. Porto Alegre tem um ótimo sistema de água, a qualidade da água é muito boa, existe uma vigilância da qualidade da água muito adequada, então é estender a rede da cidade para esses locais. Não precisa pensar em novos sistemas de abastecimento de água, simplesmente estender a rede, que já tem qualidade, já tem pressões suficientes.
E para esgoto a mesma coisa, fazer a rede coletora de esgoto e interligar a rede coletora que existe na cidade. Não é necessário pensar em novos tratamentos. Eu estou dizendo isso sem conhecer o local, sem conhecer detalhes da situação local, mas em geral é isso: integrar, essa é a palavra. Integrar todas as áreas no sistema geral que abastece a cidade de água e que coleta o esgoto da cidade. Não deixar ninguém de fora.
