Não dá para falar de cinema brasileiro sem mencionar Grande Otelo. Parte da obra do ator, comediante, cantor, produtor e compositor agora está disponível em uma mostra, no Cine Humberto Mauro, no centro de Belo Horizonte.
Com o nome Intérprete do Brasil – Uma Homenagem a Grande Otelo, a iniciativa é da Fundação Clóvis Salgado, em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), e tem uma programação que se estende até dia 29 de junho.
Dentre uma filmografia com mais de 100 filmes, a curadoria propõe 37 obras, entre curtas, longas e médias metragens. Alguns são biográficos, outros são necessários para compreender as referências do ator, e, na maior parte deles, é possível ver Otelo em ação.
Confira a lista completa de filmes, curada pelo pesquisador e cineasta Fábio Rodrigues Filho.
Quem é Otelo?
Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Otelo, enfrentou o racismo para desenvolver o cinema, teatro e televisão na primeira metade do século 20 no Brasil e atravessou diferentes gerações do audiovisual. Foi das chanchadas ao cinema novo, e teve também uma presença forte no cinema marginal e experimental. Foi astro também da cena internacional, participando de obras de Orson Welles, Marcel Camus e Werner Herzog
Embora a indústria cinematográfica tenha tentado fazê-lo caber em uma caixinha, em uma imagem, que criava estereótipos racistas de pessoas negras no Brasil, “Tudo que é apertado, rasga”, como mostrou o pesquisador e cineasta Fábio Rodrigues Filho, em seu documentário de 2019.
Ele também dedicou a sua dissertação de mestrado ao ator, sob o título “Um rasgo na imagem : fagulhas para uma pequena história do cinema brasileiro à luz da presença de Grande Otelo”, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“A história do cinema brasileiro, especialmente a história do ator e da atriz negra no cinema brasileiro, é uma história de ausências, e de violências também. Marcada por um leque de estereótipos, mas não só. Houve tentativas de subversão desse estereótipo, de não se encaixar por completo nessa estrutura muito codificada, nesse aperto e nessa condenação”, sintetiza o pesquisador.
No seu estudo, Filho analisa Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e Exu-Piá, coração de Macunaíma (1983), de Paulo Veríssimo, duas transfigurações do livro modernista Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade.
“Tentei pensar a relação com os personagens e com as transfigurações, para ver onde o Otelo intervém, como e se o Otelo rasga esses filmes e também, de alguma forma, esse tecido social de um país que, sim, é racista. Acho que o Otelo, ao seu modo, colocou para a gente desafios e também, na sua contradição, rompeu aquilo que lhe era esperado, os lugares que lhe foram supostamente destinados”, explica o cineasta.
Intérprete do Brasil
Grande Otelo é tido como um intérprete do Brasil, algo reiterado pelo nome da mostra. Uma figura que escancarou e ainda escancara problemas que não só o cinema brasileiro está envolto, como o racismo, e também encarna em si dilemas, questões, problemas imanentes à sociedade. Não à toa, sua trajetória já foi objeto de diversas pesquisas e documentários.
Tatiana Carvalho, presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), reforça a necessidade de falar sobre Otelo sempre associando sua presença à história da cultura brasileira.
“Mais do que fazer grandes papeis, o Grande Otelo nos ajuda a entender o que é o Brasil. Nesse sentido de ser esse sujeito, esse preto único, que por muitos anos povoou o imaginário e as telas e o imaginário coletivo brasileiro num conjunto muito restrito de possibilidades, condenado a interpretar papeis de extrema estereotipia racista, mas que de maneira brilhante conseguiu criar linhas de fuga e se impor de outra maneira, a partir desses papeis, com toda a contradição desses contextos”, recorda.
Para ela, Otelo colocou em imagens o que o Brasil faz com sua população e o que a dinâmica racista do imaginário brasileiro e das construções possíveis ao cinema do país sempre fizeram.
“E, ao mesmo tempo, com esse imenso talento e essa imensa sofisticação dele, dizendo do processo empobrecedor da cultura brasileira, do quanto isso tolhe os talentos e no caso dele um talento que não conseguia ser contido por essa condenação, a esse cativeiro estético, como diz a pesquisadora Cíntia Guedes”, assinala Carvalho.
Segundo ela, Otelo fez o que era possível ser feito na sua condição de existência.
“Às vezes a gente romantiza nossos ídolos, romantiza alguém que ‘chegou lá’. O que você faria nessa circunstância, naquele momento específico, com aquela condição que você tinha na mão? O que você faz hoje com a condição que você tem na mão?”, questiona a cineasta.
Recortes
Na mostra, alguns filmes são fundamentais para compreender essa história, como observa Fábio Rodrigues Filho.
“O filme que abre a mostra “Também somos irmãos” (1949) é bem importante, porque é um dos primeiros filmes a colocar na boca de cena a questão da hierarquia racial. E o Otelo está lá, com atores do teatro experimental do negro, que convencionou-se a pensar que eram dois, grupos diferentes. Otelo estava de um lado, o teatro experimental do outro, e na verdade não era bem assim. Havia diálogos, havia interseções”, conta.
Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, também é fundamental, segundo ele, já que coloca a questão racial de maneira crítica, com um personagem bem construído, inspirado na trajetória de um ator e sambista, em que Otelo é protagonista.
“Das Chanchadas, eu não poderia deixar de dizer, do Matar ou Correr (1954), um filme da famosa dupla Otelo e Oscarito. É um filme de comédia e faroeste, mas que o Otelo aparece ali ao estilo do Sancho Pança, que muda a narrativa, ou seja, ele impulsiona a narrativa”, detalha.
Amei o Bicheiro (1952) e A Dupla do Barulho (1953) também são outros dois filmes imprescindíveis, presentes na mostra em alta qualidade, algo raro de se encontrar, segundo o curador.
“Os dois filmes Otelo dizia que se orgulhava muito de fazer, porque neles ele podia experimentar diferentes formas de atuação. Então, ele fazia rir, fazia chorar, cantava, dançava, tinha uma exploração do seu potencial artístico de atuação, que ele se orgulhava muito”, afirma.
O filme que encerra a mostra, no dia 29 de junho, chamado Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos, também traz elementos potentes para pensar a história do ator e do cinema brasileiro, de acordo com o pesquisador.
“O filme traz vários elementos que a gente vai ver ao longo da mostra: o carnaval, o samba. Nesse filme, o Otelo faz um personagem muito curioso, que está sempre com um roteiro debaixo do braço, um roteiro de um filme que ele quer filmar. Esse filme desafia um pouco a nossa mirada para o cinema brasileiro de maneira muito codificada”, sinaliza.
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