“Sangramos quando não temos escola, comida ou teto seguro. Quem nos escuta? Quando a mulher chega na delegacia, já é tarde.” A fala da militante Edivania Rodrigues, do movimento Ocupar, Mulheres, Terra e Luta, marcou a primeira reunião da Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre feminicídios, realizada nesta segunda-feira (16), na Defensoria Pública do Estado, em Porto Alegre.
No encontro, lideranças de organizações feministas e representantes da sociedade civil denunciaram a precariedade da rede de atendimento às mulheres no RS e apresentaram propostas, como a criação de um plano de segurança para vítimas e de um banco de dados sobre agressores.
A presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, Fabiane Dutra, lembrou que, após a eleição das conselheiras em 2022, foi necessário protesto no Palácio Piratini para garantir a posse, realizada só em março de 2023. Ela denunciou a falta de estrutura do conselho, que enfrenta sua quarta troca de secretária executiva, sem recursos humanos nem financeiros. Ainda assim, destacou ações realizadas em parceria com universidades e fóruns regionais de mulheres, como o diagnóstico das políticas públicas para mulheres no estado. “Constatamos que cerca de 70% dos municípios gaúchos não possuem nenhum serviço vinculado à rede de atendimento à mulher”, afirmou.

Segundo ela, o governo negou recentemente o pedido de prorrogação do mandato do conselho, após já ter solicitado a prorrogação anteriormente para viabilizar a conferência estadual. Dutra também alertou para o fechamento de delegacias especializadas e a insuficiência da equipe do Centro de Referência da Mulher para atender todo o estado. “Pelo menos Rio Grande e Erechim foram transformadas em delegacia de proteção de grupos vulneráveis. E o Centro de Referência da Mulher, mesmo com nova sede, não tem equipe suficiente para atender os 497 municípios gaúchos.”

Onda de feminicídio
Integrante do Emancipa Mulher e do coletivo Juntas, Carla Zanella destacou o padrão de crescimento dos feminicídios no RS. “Janeiro é sempre um susto. Todo ano começa com uma explosão de casos, e o governo não apresenta nenhum plano de contingência.” De acordo com o Observatório Estadual de Segurança Pública do RS, de janeiro a abril foram registrados 27 feminicídios no estado e 99 tentativas. Já dados do Lupa Feminista desde o início do ano até o dia 7 de junho foram contabilizados 35.
Levantamento do Ministério da Justiça mostra que o Brasil registrou em 2024 o maior número de feminicídios desde 2020: 1.459 vítimas. Quatro mulheres são mortas por dia por violência doméstica, familiar ou por discriminação.
Para Zanella, há uma ausência de planejamento e de políticas públicas de prevenção por parte do governo estadual. “Falar de gênero nas escolas é tratado como tabu. Ter as tornozeleiras é algo que pode evitar, junto com o aplicativo, no celular, mas não basta. É preciso que a gente tenha um projeto de conscientização, de prevenção, de educação.”
Tipificação correta e dados
A psicóloga e coordenadora do Lupa Feminista, Thaís Pereira Siqueira, falou sobre o papel da sociedade civil na produção de dados. Em 2021, foi entregue à Assembleia Legislativa um diagnóstico com base em dados oficiais, sem retorno por parte da presidência da Casa.
Ela denunciou casos de assassinatos de mulheres com sinais de mutilação e violência sexual que não têm sido reconhecidos como feminicídios. “A lei prevê feminicídio por violência doméstica e por discriminação de gênero, mas muitos desses casos caem na vala comum do tráfico de drogas, quando sabemos que há razões de gênero envolvidas.”
Siqueira defendeu o uso de diretrizes nacionais e internacionais para a correta tipificação dos crimes. “Não se trata de banalizar, mas de reconhecer que a violência contra as mulheres é diversa. Precisamos de dados corretos para pensar políticas públicas eficazes.”
“Quem escuta o nosso sangramento?”
Militante de ocupações urbanas, Edivania Rodrigues relatou sobre as dores vividas nas periferias. “Sangramos todas as vezes que nossas crianças não têm escola, que não há comida na mesa. Todas as vezes que o vento é tão forte que as nossas casas não conseguem nos proteger. Sangramos quando os nossos filhos passam um dia ou uma manhã toda com os pés molhados porque, na ocupação, não tem saneamento, não tem nada. Mas quem escuta o nosso sangramento?”
Rodrigues propôs a criação de pontos de escuta nas comunidades. “Somos nós, nas ocupações, que fazemos a primeira escuta. Se na delegacia encontramos um policial que não acolhe, somos violentadas de novo pelo Estado.” Também cobrou políticas com recorte de classe e raça. “A Lei Maria da Penha precisa alcançar também quem não tem celular para registrar ocorrência.”

A advogada Mariza Iracet, do Coletivo Feminino Plural, destacou ações de prevenção com estudantes. “De 30 alunos, cinco relataram violência em casa, e uma mãe procurou ajuda após incentivo da filha.”
Iracet atuou por nove anos no Centro de Referência da Mulher de Canoas, que atendeu quase 10 mil mulheres. “Perdemos duas. Isso mostra a importância dos serviços.” Sugeriu uma van itinerante com equipe multidisciplinar para regiões vulneráveis.
Propostas para o Judiciário e segurança
Advogada e ex-secretária estadual de Políticas para as Mulheres, Ariane Leitão apontou falhas graves na atuação do Judiciário e defendeu o fortalecimento da rede de atendimento. “Precisamos conversar com o Poder Judiciário, porque ele está libertando agressores, não respeita a Lei Maria da Penha nem o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero”, afirmou. Ela defendeu formação de magistrados e atuação integrada do Judiciário e Ministério Público.
A defensora pública Cláudia Barros defendeu um plano de segurança individual desde o primeiro atendimento. “Essa mulher não pode sair da delegacia e voltar para casa como se nada tivesse acontecido.” A Defensoria está elaborando esse protocolo. Também propôs um cadastro público de agressores, como na Argentina. “A informação pode salvar vidas.”

Interseccionalidade, saúde mental e território
A psicóloga Cris Bruel, conselheira do Conselho Estadual de Direitos Humanos e integrante da Rede LesBi Brasil, defendeu a inclusão de mulheres lésbicas, bissexuais e trans nas políticas públicas. “Estamos falando de feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio. Precisamos nomear essas violências e nomear quem as comete: são homens.”
A doutora em ciência política Nívia Carpes compartilhou experiências observadas em Portugal, como o uso de teleassistência para proteção de mulheres em risco. “É preciso pensar uma estrutura ideal de proteção às mulheres nos níveis federal, estadual e municipal. Não podemos continuar ajustando políticas às carências impostas por uma lógica patriarcal”, defendeu.
Representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Salete Carollo criticou duramente a gestão estadual. “Temos um governo que administra com lógica de mercado. Não somos vistas como humanas”, declarou. Conforme apontou a dirigente, as mulheres buscam primeiro os postos de saúde, e não a delegacia.
“Ali nos sentimos cuidadas. A delegacia nos assusta.” Relacionou ainda o aumento de suicídios no campo ao modelo agrícola e defendeu apoio psicológico nas unidades de saúde. Segundo ela, a reconstrução dos conselhos municipais das mulheres é urgente, assim como a organização a partir dos territórios. “Mulheres do campo, da cidade, todas precisam estar organizadas.”

Efetividade e cuidado nos territórios
Integrante da ONG Themis, Justiça e Direitos Humanos, Rafaela Caporal alertou para a descontinuidade das políticas e defendeu capacitação continuada. “A Restinga é cronicamente desassistida.” Destacou a importância da preparação dos policiais, inclusive quanto ao formulário de avaliação de risco.
Representante do Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas-RS (Gamp), Eva Santos defendeu a criação de um sistema nacional de cuidado às mulheres e a inclusão de indicadores e orçamentos claros. “Tudo é fragmentado, depende da transversalidade que, sem organização concreta, vira só discurso.”
Já a advogada Denise Argemi, integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e coordenadora dos Estados Gerais das Mulheres – Brasil, criticou a falta de efetividade da Rede Lilás. “Não pelas entidades que a compõem, mas pela falta de efetividade concreta.” Ela também destacou a importância do projeto Bancos Vermelhos, símbolo de combate ao feminicídio. “Só no RS, já temos 13 bancos instalados.”
Por fim, a vice-presidenta do Sindimetrô, Ana Paula Almada, alertou para a falta de espaços de convivência adequados para as mulheres no ambiente de trabalho. “Não há espaço de cuidado para os 20% de mulheres que fazem o transporte funcionar todos os dias. E muitas empresas públicas ainda não têm programas de proteção às funcionárias.”
As propostas serão incluídas no plano de trabalho da Comissão Externa da Câmara.
O que diz o governo do estado
Em resposta ao Brasil de Fato RS sobre as denúncias e criticas feitas, o governo do estado reafirma seu compromisso com a proteção e os direitos das mulheres, com políticas públicas efetivas e investimentos robustos e transversais em diversas áreas.
Entre as principais iniciativas, o Executivo estadual destaca o programa SER Mulher, criado por esta gestão, com mais de R$ 20 milhões anuais em recursos. “O projeto pioneiro de monitoramento do agressor por tornozeleira eletrônica, que contribuiu para a queda de 21,6% nos feminicídios em 2023 e mais 15% em 2024; o aumento das Patrulhas Maria da Penha; a capacitação profissional de mulheres em situação de vulnerabilidade; e a ampliação dos Centros de Referência.”
Com relação à prorrogação do mandato das atuais conselheiras do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH) informa que o processo de prorrogação está em tramitação, para análise e deliberação governamental, através da Casa Civil.
Conforme ressaltou o governo do estado, a estrutura atual já garante a execução de políticas específicas, com forte atuação do Departamento de Políticas para as Mulheres e o envolvimento articulado de diversas secretarias. “A proposta de recriação de uma secretaria dedicada é legítima e será considerada com o devido respeito, mas é preciso esclarecer que a ausência dessa estrutura não significa ausência de políticas públicas. Ao contrário: as ações são hoje mais amplas, integradas e com investimentos significativamente superiores aos de gestões anteriores.”
O Executivo ainda detalhou políticas transversais com as secretarias de Segurança Pública, Saúde e Educação.
Neste link as respostas completas do governo do estado.

Seminário feminicídio: Entre a misoginia e o negacionismo
O seminário “Feminicídio: Entre a misoginia e o negacionismo” será realizado nos dias 26 e 27 de junho, no Auditório Ipê, 2º andar do Centro Cultural da Universidade Federal do RS (Ufrgs), na rua Eng. Luiz Englert, 333 – Farroupilha, Porto Alegre – RS. Contará ao todo com 12 horas complementares. As inscrições estão abertas, num total de 165 vagas e podem ser feitas preenchendo o formulário aqui.
O evento é uma parceria do projeto Todas Vivas – Viver é um direto da Campanha Permanente do Levante Feminista contra o Feminicídio, Lesbocídio e o Transfeminicídio e seu Observatório Lupa Feminista, executado pelo Coletivo Feminino Plural e apoio da Fundação Luterana de Diaconia com o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (Niem/Ufrgs) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Acesse a programação completa do seminário no site da Lupa Feminista.

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