‘Agrogays’ enfrentam exclusão e preconceito para encontrar lugar no campo


Odorico Reis e Ivan Rangel cresceram negando a sua sexualidade, já que nunca conheceram ninguém igual a eles em suas cidades. Odorico foi agredido pela família por ser gay. Hoje, luta contra o preconceito
“No campo, tem espaço para gay?” Essa questão envolveu os pensamentos de Odorico Reis e Ivan Rangel durante toda a adolescência.
Os dois cresceram tentando negar a sexualidade, já que nunca viram ninguém como eles em suas cidades, no interior de Goiás e de Minas Gerais, respectivamente.
O preconceito dentro da própria casa marcou a vida de Odorico. O influenciador conta que o pai o benzia todos os dias para “tirar o espírito mal”, que associava ao fato de o filho ser gay. Além disso, trabalhar na roça era visto como uma forma de deixá-lo mais “masculino”.
Já o influenciador e produtor Ivan precisou sair do campo, pois sentia que ali não havia espaço para alguém como ele. Hoje, de volta à lida com os animais, ele busca ser um exemplo de que é possível superar os preconceitos para ser quem é.
Odorico Reis e Ivan Rangel, conhecidos como agrogays
Arquivo Pessoal
Confira as histórias dos dois influenciadores abaixo.
Trabalhar para ‘virar homem’
Em suas redes sociais, Odorico Reis está sempre com seu chapéu rosa. Em alguns vídeos, ele tira leite, toca o berrante e narra rodeios com seu look de shorts e salto alto. A ideia é quebrar o preconceito e mostrar que ele não tem medo de ser quem é.
Quem acompanha o conteúdo divertido, muitas vezes ao lado de celebridades como Ana Castela, não imagina como foi difícil quando os pais dele descobriram a sua orientação sexual.
Antes mesmo de se assumir gay, o influenciador de Buriti Alegre (GO), uma cidade com menos de 11 mil habitantes (saiba mais abaixo), já era alvo de críticas da família por causa da sexualidade.
O pai, pecuarista, o levava para trabalhar na fazenda porque achava que isso iria torná-lo mais masculino.
Odorico, hoje com 33 anos, planejava esconder a sua sexualidade até a morte dos pais. Mas tudo mudou quando a mãe leu uma conversa dele com o namorado, quando ele tinha 18 anos.
Depois disso, o pai começou a acordá-lo jogando água benta, tentando expulsar o “espírito mal” que, segundo ele, fazia o filho ser gay. Odorico também era forçado a participar de grupos de reza na igreja.
“Meu pai me acordava batendo, quebrando a cama e com umas frases muito difíceis, assim: ‘Prefiro você com câncer do que gay’”, lembra.
Odorico relata que os pais alternavam momentos de agressividade. A mãe chegou a tentar se matar por causa da sexualidade do filho.
Para ele, era difícil entender como os pais, que haviam feito promessa para conseguir ter um filho, desenvolveram tamanha rejeição.
Foi então que Odorico decidiu se suicidar. Entretanto, o ato foi interrompido pelo pai. “Meu pai bate na porta e fala assim: ‘Eu estou com você. Não faz isso’”, lembra.
Depois do momento de acolhimento, a relação se tornou menos agressiva. Mas, segundo ele, a aceitação completa nunca veio.
Um ponto de mudança foi quando o Papa Francisco, morto em abril, defendeu a bênção de casais gays. Isso influenciou a opinião da família, conta Odorico.
Apesar de a religião muitas vezes ter sido usada contra ele, Odorico, que é católico, se orgulha de não ter perdido a sua fé.
Ele foi vereador entre 2017 e 2020. O reconhecimento da comunidade ajudou a melhorar o comportamento dos pais.
Atualmente, ele considera que foi bom a sua mãe ter achado aquela conversa. “Eu não teria forças para me afirmar”, diz.
Hoje, Odorico é influenciador, com mais de 600 mil seguidores no Instagram e é amigo de celebridades ligadas ao agro, como a cantora Ana Castela.
Além disso, ele trabalha viajando o Brasil, apresentando eventos, como rodeios e shows. Quando não está na estrada, ele gosta de ficar na fazenda da família, ainda que os pais não morem mais lá.
“Eu fui mostrando profissionalismo. Eu respeitava e era respeitado também, tudo isso foi me abrindo portas”, afirma.
Nas redes, ele se define como “agrogay”. O termo foi inspirado em outro influenciador: Ivan Rangel, apelidado assim pelos fãs (conheça a história dele a seguir).
“É um lugar que não existia: ser um gay que fala do agro [nas redes sociais], falo sobre religião também. É engraçado, porque o agro não gosta do gay, o gay não gosta do agro. Na religião, às vezes têm dificuldade de compreender o gay também”, resume.
Saiba mais sobre a cidade de Odorico
Arte / g1
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Ser gay ou da roça?
Influenciador volta ao campo após sair por preconceito: ‘Hoje sou quem eu sou’
Para Ivan Rangel, de 32 anos, era impossível ser gay e trabalhar na roça. Ele nunca tinha visto alguém com esse perfil — e achou que teria que escolher entre um ou outro.
“Até os meus 19 anos, eu tive vários relacionamentos com mulheres contra a minha vontade, porém ninguém me obrigava”, diz.
Para ele, ser da roça significava também ter uma namorada, constituir família e ter filhos. “É o que eu fui ensinado que era o certo”, afirma.
Ele conta que, ao se assumir, foi um dos “pioneiros” da família e da sua cidade, São Pedro do Suaçuí (MG). Por isso, sentiu a necessidade de se mudar e morou em diversas áreas urbanas do Brasil.
Para Ivan, a experiência foi “bem assustadora”. Em todos os lugares por onde passou, faltava representatividade — o que gerou um sentimento de solidão e desconexão.
“Foi uma luta interna mesmo […] Foi aí que virou a chave na minha cabecinha. Eu não me encontro em cidade. Eu me sinto ansioso e me sinto mal em vários sentidos”, relata.
“Eu estava abrindo mão da minha essência por ser quem eu sou. Isso não estava certo”, completa.
Apesar de nunca ter sofrido agressões em seu município, existe um preconceito velado: “A gente acaba não se encaixando por falta de abertura das pessoas. Por acharem que, por ser gay, a gente não pode tomar frente de um trabalho que é considerado um serviço de homem”, relata.
Hoje, ele trabalha na fazenda dos pais, que são pecuaristas e produzem requeijão. Também estuda gestão ambiental.
Apesar de amar a roça, o produtor conta que se sente sobrecarregado pela tradicionalidade local e pelo que chama de “exclusão silenciosa”.
“Por exemplo, tem uma cavalgada. Eu sou apaixonado por cavalgada e muitas das vezes eu não recebo convite. No fundo, eu sei que é porque eu sou um cara gay. As pessoas são muito conservadoras e não querem ter as suas imagens vinculadas comigo”, afirma.
Ivan também é influenciador e seus fãs o chamam de “agrogay”. No Instagram, ele tem quase 180 mil seguidores.
Apesar de tratar o preconceito com humor, ele relata que recebe diversas ameaças nas redes socias.
Por outro lado, Ivan se tornou a referência que ele mesmo sentiu falta quando se descobriu gay: ele conversa com outras pessoas na mesma situação e oferece acolhimento.
Saiba mais sobre a cidade do Ivan
Arte / g1
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