Gaza e Irã mostram que dominação dos EUA não está no fim e só cairá com mobilização popular global

Uma semana de escalada da agressão israelense contra o Irã marca um ponto de inflexão na campanha Estados Unidos – Israel para remodelar o Oriente Médio e finalizar o projeto sionista de ocupar totalmente a Palestina – agora perseguido por meios abertamente genocidas. Outro conflito para mudança de regime na região parece cada vez mais iminente, novamente justificado por alegações há muito desacreditadas sobre armas nucleares que, após duas décadas de análise, continuam inexistentes no Irã.

A campanha de bombardeio de Israel, que efetivamente inviabilizou as negociações em andamento do Irã com os Estados Unidos, não contribuirá em nada para promover a paz regional. E a ausência de uma resposta forte de outras potências globais torna a situação ainda mais perigosa.

O Irã não é um tigre de papel, apesar das afirmações dos falcões israelenses e ocidentais, e é improvável que qualquer tentativa de derrubar seu governo seja rápida ou fácil. Em vez disso, pode desencadear um conflito prolongado envolvendo atores que vão muito além dos EUA, de Israel e do Irã. Ainda assim, caso os Estados Unidos consigam derrubar a República Islâmica, isso marcaria a vitória imperial mais significativa desde o colapso da União Soviética – uma conquista suprema em seu esforço de décadas para obter um domínio global incontestável.

Desde o colapso da União Soviética, os Estados Unidos têm buscado um caminho de hegemonia incontestável – ordem global definida pela unipolaridade. O primeiro passo estratégico nessa busca foi a expansão da Otan (aliança militar ocidental), que exigiu uma série de intervenções na Europa para eliminar qualquer resistência remanescente ao imperialismo ocidental. A primeira delas foi na Bósnia, em 1995, onde a intervenção da Otan conseguiu desmantelar a infraestrutura militar socialista pós-iugoslava e solidificar a presença ocidental nos Bálcãs. A segunda ocorreu em Kosovo, em 1999, onde o objetivo era cortar a influência sérvia e preparar o terreno para um Kosovo alinhado ao Ocidente. No mesmo ano, a Otan bombardeou a Iugoslávia, acelerando o desmembramento de uma potência regional outrora independente.

O sucesso dessas ações – libertar a Europa Oriental da influência russa e colocar vastas faixas de território sob o controle da Otan – encheu os círculos de política externa dos EUA de um profundo senso de confiança, até mesmo de arrogância. Essa foi uma “corrida da vitória” que muitos acreditavam que nunca terminaria. Por um tempo, parecia que a Rússia havia sido permanentemente derrotada, neutralizada politicamente e subordinada economicamente – não mais capaz de desafiar o domínio global dos EUA.

Depois de estabelecer controle quase total na Europa, colocando a Rússia em desvantagem, os Estados Unidos mudaram o foco para o projeto mais amplo de neutralizar a resistência à sua hegemonia no Oriente Médio e norte da África. Revestido pela narrativa da “guerra ao terror”, o governo de George W. Bush usou o trauma do 11 de setembro e 2001 como arma para lançar uma ambiciosa campanha de reestruturação da Ásia Ocidental e do Norte da África. Apesar do colapso da esquerda em grande parte da região, nações como o Iraque, o Irã, a Síria e a Líbia continuaram a afirmar posições nacionalistas e anti-imperialistas, desafiando o controle dos EUA. A campanha começou com a invasão do Afeganistão, uma ação não apenas voltada para o contraterrorismo, mas para o estabelecimento de uma base geoestratégica para conter qualquer futuro ressurgimento russo.

Então veio a Primavera Árabe de 2011. Iniciado por uma revolta popular na Tunísia, o movimento prometia renovação democrática de baixo para cima – massas mobilizadas exigindo transformação. Mas esse tipo de mudança, enraizada na agência popular, era muito mais ameaçadora para a hegemonia dos EUA do que qualquer autocrata. Os EUA rapidamente apoiaram uma ditadura militar reconstituída no Egito, garantindo que nenhum governo democrático e antissionista surgisse no Cairo. Com a resistência regional enfraquecida, os EUA se voltaram para a normalização diplomática de sua hegemonia por meio dos Acordos de Abraão – acordos que muitas vezes são mal interpretados como manobras trumpistas, mas que, na verdade, são uma continuação da estratégia de longo prazo dos EUA para estabilizar o domínio sionista na região sob uma ordem regional compatível.

O crash econômico de 2008 expôs as profundas contradições do capitalismo estadunidense, marcando um ponto de inflexão na sua credibilidade. Uma década depois, a grotesca má gestão da pandemia da Covid-19, produto de anos de desmantelamento neoliberal da infraestrutura pública, revelou a decadência interna do império dos EUA. Enquanto isso, o esperado declínio da China nunca aconteceu.

Pelo contrário, a China cumpriu de forma constante suas metas de desenvolvimento, erradicou a pobreza extrema e avançou decisivamente em direção a uma economia de orientação socialista. O relativo declínio econômico dos Estados Unidos, juntamente com uma série de campanhas militares fracassadas no Oriente Médio, sinalizou que a era unipolar poderia estar se desfazendo. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, ficou claro que o enfraquecimento anterior da Rússia havia sido apenas temporário. Uma Rússia mais assertiva e militarmente capaz havia retornado ao cenário geopolítico, forçando o mundo a contar com uma mudança na dinâmica de poder há muito tempo em formação.

O surgimento da multipolaridade foi recebido pela esquerda global com ambivalência, contradição e, às vezes, confusão. Em uma extremidade, algumas vozes da esquerda denunciaram a China como autoritária e a Rússia como imperialista, entrando diretamente nas narrativas dos EUA que visam deslegitimar qualquer alternativa ao seu governo. No outro extremo, houve pronunciamentos triunfalistas sobre o fim iminente do imperialismo dos EUA, com uma fé equivocada na Rússia e na China para “salvar” o mundo – militarmente no caso da Rússia e economicamente no caso da China. Ambas as posições são errôneas. A primeira reforça diretamente a dominação dos EUA, eliminando seus adversários. A segunda desloca a responsabilidade das forças populares para os Estados – substituindo a luta de massas pela esperança passiva. Nenhuma dessas respostas promove a causa do anti-imperialismo. A tarefa que temos não é terceirizar a luta, mas recuperá-la, enraizando-a nos esforços organizados e conscientes dos povos em todos os lugares.

O genocídio em curso em Gaza ressalta a natureza frágil e ainda em desenvolvimento da ordem mundial multipolar emergente. Por mais de 20 meses o mundo testemunhou a matança em massa de civis, o assassinato seletivo de líderes da resistência e a destruição sistemática de um povo inteiro, mas nenhuma das chamadas potências emergentes conseguiu montar uma resposta eficaz. A impunidade com que Israel e os Estados Unidos realizam o que é, sem dúvida, o genocídio mais visível da história moderna revela a ausência de contrapesos genuínos ao domínio imperial dos EUA. Apesar de sua oposição retórica à hegemonia ocidental, nem a Rússia ou a China tomaram medidas significativas para interromper o derramamento de sangue. Pelo contrário, os Estados Unidos prosseguiram com sua campanha de extermínio e reestruturação regional sem consequências.

À medida que Washington se aproxima de um conflito aberto com o Irã – uma escalada que desestabilizaria ainda mais a região e ameaçaria a economia global – o silêncio ou a passividade de outras potências globais se torna ainda mais evidente. Embora a intervenção militar direta da China ou da Rússia possa não impedir essa trajetória, uma ação diplomática assertiva ou medidas econômicas que desafiem a viabilidade do projeto sionista poderiam, pelo menos, sinalizar uma postura coordenada das forças contra hegemônicas.

Até o momento, no entanto, quatro dos cinco membros fundadores do Brics – Índia, China, Rússia e Brasil – mantiveram laços econômicos com Israel ou se abstiveram de liderar esforços de condenação global, ao contrário da África do Sul. A Índia tem sido a mais reticente em criticar Israel publicamente, enquanto o Brasil não tem o peso necessário para influenciar significativamente o conflito. A China mantém laços econômicos com Israel, apesar de Israel não estar entre seus vinte principais parceiros comerciais.

Isso deve servir como um alerta para todas as forças de esquerda. A ordem multipolar emergente sinaliza possíveis transformações – desde a liberação nacional até uma maior interdependência econômica entre os países do Sul Global e até mesmo a possibilidade de um sistema mais igualitário de governança global. Entretanto, a multipolaridade genuína não surgirá apenas por meio de esforços diplomáticos de Estados contra hegemônicos; será necessária uma mobilização popular em massa para forjar uma ordem global renovada.

Se houver uma derrota do imperialismo estadunidense, ela virá da mobilização das pessoas – dos trabalhadores, estudantes, camponeses e revolucionários de todo o mundo. Os Estados anti-imperialistas podem ser aliados, mas não serão suficientes para desfazer a ordem unipolar. O arbítrio, a iniciativa e a responsabilidade de resistir são nossos. Confiar em outros para travar nossas batalhas é loucura. Vamos nos organizar. Vamos nos mobilizar. A luta é nossa.

*Stephanie Weatherbee Brito faz parte da Assembleia Internacional dos Povos (IPA, em inglês).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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