Mais da metade dos créditos de carbono da Amazônia está ‘contaminada’ pela mineração

Marcas globais como Ifood, Uber, Spotify e Google desembolsaram milhões de dólares para neutralizar suas emissões de gases de efeito estufa com projetos que, na prática, podem não ter garantia de integridade climática. Um levantamento exclusivo da InfoAmazonia revela que mais da metade (61%) de todo o crédito de carbono vendido da Amazônia brasileira está em áreas também destinadas à mineração, segundo dados da Agência Nacional de Mineração.

São 40,1 milhões de toneladas de carbono potencialmente “sujo” vendidas – uma quantidade maior do que o Brasil inteiro emite para a própria produção anual de eletricidade – de um total de 65,8 milhões de toneladas comercializadas. Esse montante comprometido foi negociado por 31 projetos, todos baseados no mecanismo REDD+, criado no âmbito da Convenção do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é preservar o estoque de carbono florestal, que passa a ter um valor financeiro: cada crédito equivale a uma tonelada de dióxido de carbono (CO₂) que deixou de ser emitida em razão do suposto desmatamento evitado. 

Mais de 3,6 mil empresas, entidades e organizações internacionais, incluindo nomes globais do varejo, aviação, tecnologia e mercado financeiro, compraram esses créditos de carbono, incluindo algumas mineradoras, como a Vale e a Sigma.

Esta reportagem parte da base de dados do projeto Carbono Opaco, desenvolvida em parceria entre a InfoAmazonia e o Centro Latinoamericano de Jornalismo Investigativo (CLIP), que mapeou todos os projetos REDD+ e empresas que atuam nesse segmento do mercado voluntário de carbono no Brasil, Peru e Colômbia. A InfoAmazonia foi responsável pelo levantamento dos dados brasileiros. A base completa será publicada em julho.

Nossa análise identificou 114 projetos de carbono REDD+ no país, dos quais 73 estão sobrepostos totalmente, parcialmente ou tocam o limite de áreas destinadas à mineração. Entre esses, 31 já comercializaram créditos (30 pela Verra, maior certificadora do mundo, e um pela colombiana Cercarbono). 

Há casos em que a mineração já foi autorizada e, mesmo assim, os créditos continuam sendo emitidos. Em outros, projetos de carbono foram abandonados para dar lugar à exploração de minério. Há também áreas em que o desmatamento já comprometeu a integridade da floresta – condição essencial para a geração de créditos. Alguns projetos avançam em terras indígenas com garimpo ativo.

“Estamos diante de uma economia altamente destrutiva de um lado, que é a mineração, e de uma suposta economia verde do outro, ambas explorando o mesmo território”, afirma a pesquisadora Marcela Vecchione Gonçalves, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), que também foi consultora científica desta reportagem. “Uma mesma área está sendo usada como ativo financeiro para captar investimentos tanto da indústria da mineração quanto do mercado de carbono, o que é absolutamente incompatível”, completa.

Os créditos deveriam ser vendidos para que as empresas neutralizem parte das suas emissões de gases de efeito estufa, compensando-as com a conservação das florestas tropicais. Essas transações são citadas em relatórios de sustentabilidade e ESG (ambiental, social e governança) das companhias, ajudando a atrair investimentos e acessar financiamentos verdes.

Cerca de 40% dos processos de mineração em conflito com áreas de créditos de carbono estão em fase de pesquisa, estágio que permite escavação e supressão vegetal. Outros 21% são pedidos para instalação de garimpo e pelo menos 33 (3,8%) possuem concessão do Estado para lavra, etapa que autoriza a operação completa da mina. A substância mais procurada nas áreas de créditos de carbono é o ouro, com ao menos 239 pedidos registrados na ANM. Outros 134 processos são para bauxita e 68 para cassiterita. 

O Pará lidera o ranking de conflito entre mineração e mercado de carbono, com 12 áreas identificadas, seguido pelo Amazonas, com 8, e Rondônia, com 6. Os projetos fazem parte do chamado mercado voluntário de carbono — sistema não regulado que permite que empresas comprem créditos, sem que isso conte para as metas oficiais dos países no âmbito dos acordos climáticos da ONU.

Apesar de não haver uma proibição legal para que projetos de carbono e de mineração ocupem o mesmo espaço, especialistas consideram as duas atividades ambiental e climaticamente incompatíveis. A lógica dos projetos de carbono, especialmente os de REDD+, é evitar emissões de gases de efeito estufa e garantir a conservação florestal a longo prazo, enquanto a da mineração, por sua natureza, implica em emissões significativas e na supressão de vegetação. 

A nova Lei nº 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), prevê que áreas que geram créditos de carbono permaneçam protegidas de futuros desmatamentos, sob pena de violar dois critérios. Um deles é o de adicionalidade, que significa que a redução de emissões de CO₂ só aconteceu por causa do projeto e não teria ocorrido no cenário normal, sem intervenção. Ou seja, o projeto só pode gerar créditos se comprovar que evitou um desmatamento ou degradação florestal que era provável e plausível sem suas ações.

O outro é o de permanência, que prevê que as reduções de emissões ou o carbono estocado na floresta precisam ser mantidos ao longo do tempo, evitando que o carbono volte para a atmosfera por desmatamento, degradação ou outros fatores futuros. Projetos devem garantir que os benefícios climáticos sejam duradouros e estáveis.

A lei também reforça a obrigatoriedade de que povos indígenas e comunidades tradicionais sejam consultados previamente antes da implantação de projetos de carbono, de forma livre e informada, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os protocolos de consulta próprios de cada povo.

Vecchione lembra que a integridade climática firmada no Acordo de Paris, em 2015, não se limita apenas à adicionalidade ou à permanência no tempo das reduções de emissões. Inclui também um compromisso explícito com a integridade socioambiental. “O preâmbulo do Acordo deixa claro que as ações contra a mudança climática devem respeitar os direitos humanos, incluindo os dos povos indígenas e das comunidades locais, além de promover o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza. Isso não é acessório, está escrito no texto-base do Acordo de Paris”.

Depois de vender milhares de créditos, área é desmatada para atender demanda por minerais estratégicos

Pelo menos seis projetos de carbono identificados em áreas de mineração foram suspensos após a constatação de irregularidades pela certificadora Verra. Alguns deles venderam milhões de créditos antes das áreas começarem a ser desmatadas para projetos de mineração.

O Projeto Maísa REDD+, no município de Moju, no Pará, vendeu 635 mil créditos de carbono para 317 compradores, incluindo para revendedoras, e para marcas famosas, como Uber, Google, Giorgio Armani, AstraZeneca, TIM, entre outras.

Em 2022, a Maísa Agropecuária desistiu do projeto de carbono e rompeu contrato para preservação da área, que era de 30 anos, para colocar mineração e fazendas no local. Desde então, o desmatamento nessa área disparou e, em 2023, a ANM emitiu cinco autorizações para mineração de terras raras, elementos estratégicos para a transição energética, em toda a área antes destinada ao projeto de carbono. No total, mais de 6,4 mil hectares de florestas já foram desmatados na propriedade desde 2022. 

Em junho de 2023, uma operação do Ministério do Trabalho resgatou 16 pessoas em condições análogas à escravidão na propriedade do projeto Maísa. Os trabalhadores foram encontrados realizando a derrubada de 477 hectares de floresta nativa. Em 2024, o Ibama multou a Maísa Agropecuária em R$ 3,6 milhões por ter realizado desmatamento na área sem autorização legal.

Desenvolvido pela Biofílica em parceria com a Maísa Agropecuária, o projeto prometia preservar mais de 28 mil hectares de floresta por pelo menos 30 anos, entre 2012 e 2052, mas foi encerrado por “desequilíbrio financeiro, em razão dos preços de venda dos créditos de carbono”, segundo a Maísa Agropecuária argumentou para a Repórter Brasil, após o resgate dos trabalhadores na fazenda. O status do projeto, de acordo com a plataforma Verra, é “inativo”.

A Uber, por exemplo, recebeu créditos do projeto Maísa, adquiridos por meio da empresa de consultoria ambiental Anaconda Carbon S.A, para neutralizar 1.545 toneladas de CO2 das suas operações no México, Colômbia, Equador, Panamá e República Dominicana. 

O Banco Votorantim (BV) utilizou 140 mil créditos de carbono do projeto Maísa para neutralizar emissões dos carros financiados pelo banco. Já o Google neutralizou cinco toneladas de CO2 do seu projeto Google Cloud. A longa lista inclui companhias como a farmacêutica AstraZeneca e a telefônica TIM.

ANM autoriza mineração de ouro e cobre em área de projeto de carbono

A cientista social Fabrina Furtado, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), voz crítica ao mercado de carbono no Brasil, diz que esse mecanismo de compensação das emissões “tem falhas estruturais”, que vão desde dúvidas sobre a efetiva posse das áreas dos projetos a questões conceituais, como a de que o livre mercado de carbono seria a saída para o clima, o que, segundo ela, permite que empresas e governos deixem de enfrentar as reais causas da crise climática, como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento ligado ao agronegócio e à mineração.

“A sua origem é falha, na lógica de que o mercado vai solucionar um problema que o mercado criou. Não é esse mecanismo que vai combater a mudança climática, nem vai reduzir o desmatamento”, destaca.

Furtado estuda os impactos dos projetos REDD há mais de uma década e aponta que o sistema, longe de reduzir emissões, tem funcionado como um instrumento de flexibilização para grandes emissores, como mineradoras e petroleiras. 

Maior emissor de créditos em área sob risco de mineração na Amazônia, o projeto de carbono Florestal Santa Maria (FSM-REDD+), no município de Colniza (MT), tem ao menos sete autorizações para pesquisa de ouro e cobre dentro de seus limites, segundo dados da ANM. Os pedidos estão em nome das mineradoras 3A Mining e Nexum Resources, que comunicaram início das atividades de mineração formalmente à agência entre fevereiro e maio deste ano. 

Segundo dados disponíveis na plataforma pública da certificadora Verra, o projeto já emitiu 8 milhões de créditos, comercializados com mais de 300 compradores diretos.

O projeto FSM-REDD+ foi desenvolvido pela Florestal Santa Maria S.A , controlada pela Bela Aliança Agronegócios. Ele promete manter intactos até 2039 mais de 17,7 mil hectares de floresta nativa no chamado “arco do desmatamento”, uma das regiões mais ameaçadas da Amazônia brasileira. Mas toda essa área também está registrada para mineração, o que, segundo especialistas, pode colocar a permanência do projeto em risco, caso a mineração avance.

Em abril, a ANM autorizou um garimpo de ouro em uma área total de 9,8 mil hectares, que ocupa 1,3 mil hectares do projeto de carbono FSM. A autorização foi concedida à Cooperativa Mista dos Garimpeiros de Peixoto de Azevedo.

Uma das sete autorizações para pesquisa de ouro na área do projeto FSM | Fonte: ANM/Verra

No relatório de risco enviado à Verra em 2012, os responsáveis pelo projeto FSM minimizaram a chance de um possível avanço da mineração: Acredita-se que a quantidade de recursos minerais disponíveis na fazenda FSM não justifica investimentos em mineração”, escreveram. Na época, a mineração foi considerada como risco zero para o projeto.

A lista de beneficiados do FSM é diversa: inclui a Boeing e a mineradora Vale, que utilizaram esses créditos para compensar suas emissões e promover metas de neutralidade de carbono. Entre as compradoras desses créditos, também está a Moss Earth, a maior comercializadora de créditos do Brasil. Apesar das autorizações para mineração na área, o projeto segue ativo na plataforma Verra.

A mineradora Vale informou à reportagem que a neutralização de emissões da sua cadeia do projeto FSM-REDD+ foram adquiridos por terceiros “em nome da Vale” – sem revelar a identidade do terceiro – para compensar as emissões de dois eventos patrocinados pela companhia, a Conferência Internacional Vale Amazônia e o estande da Vale na Feira da Indústria do Pará (FIPA). Segundo a empresa, “a Vale não teve participação nem responsabilidade sobre essa transação”.

Conflitos sociais e grilagem de terras

Segundo Marcela Vecchione, essa financeirização da floresta imobiliza territórios na Amazônia para que sejam exclusivamente destinados a estes projetos, e restringe o uso tradicional da terra praticado pelos povos e comunidades locais. “As pessoas perdem autonomia em suas áreas, mudam seus modos de vida para atender aos requisitos de um projeto de carbono que, muitas vezes, não gera benefício algum para elas”, diz.

Por outro lado, segundo a pesquisadora, quase nada muda nas cadeias produtivas. “As empresas anunciam as compensações, mas não estão mudando nada nas formas e escalas de produção. Não existe redução, existe uma compensação que é falha no objetivo de reduzir as emissões”.

Nas terras indígenas (TIs) Kayapó e Munduruku, onde existem projetos registrados na Cercarbono, a reportagem identificou áreas de garimpo ilegal ativo sobrepostas às áreas destinadas à geração de crédito de carbono. 

O Ipixuna REDD+ Project, único projeto da certificadora colombiana com créditos comercializados, está na TI Ipixuna, no Amazonas, que comercializou 50 mil créditos. Nessa área, existem três processos de mineração ativos na borda da terra indígena. Na ANM, os três pedidos foram notificados sobre a interferência no território.

Na TI Munduruku, onde existem quatro projetos de carbono desenvolvidos pela empresa Indigenous Carbon LLC, os projetos dividiram a comunidade. Apesar de ter o consentimento da Associação Indígena Pusuru, parte dos indígenas alegam não terem sido consultados sobre os projetos. Eles apontam descumprimento do Protocolo de Consulta Munduruku, que estabelece que todas as aldeias devem ser consultadas. Mesmo assim, o projeto foi registrado na empresa certificadora e figura como ativo.

Segundo a defensora pública Andreia Macedo Barreto, do Pará, os projetos de carbono têm gerado uma nova frente de grilagem e conflitos fundiários. “O pano de fundo de tudo é a terra”, diz Barreto. A Defensoria mantém desde 2023 um projeto chamado “Combate à Grilagem do Carbono”, que recebeu o Prêmio Innovare, e resultou no bloqueio de matrículas suspeitas em áreas de floresta pública usadas por projetos de carbono.

A defensora relatou diversos conflitos nas comunidades associados aos projetos de carbono, incluindo divisões internas, disputas financeiras e restrições ao uso do território. Andreia Barreto destaca a disparidade dos benefícios sociais oferecidos às comunidades, que geralmente recebem menos dinheiro do que as empresas comercializadoras.  

Em relação à sobreposição de projetos de carbono com áreas de mineração, a defensora pública foi enfática: “A mineração é absolutamente incompatível com um projeto de carbono. Você não pode prometer conservação e, ao mesmo tempo, ter autorização oficial para escavar, derrubar floresta e abrir minas no mesmo território”, declarou.

Ela lembra ainda que o poder econômico da mineração dificulta qualquer enfrentamento: “É um sistema muito mais estruturado, com apoio de União, estados e municípios, que recebem os royalties da mineração. Enquanto isso, o mercado de carbono ainda é nebuloso, mal fiscalizado e com muita gente fingindo que entende como ele funciona”, disse.

A defensora ressalta que as métricas de cálculos dos projetos de carbono pressupõem o desmatamento de uma área, que é o que valoriza o crédito por desmatamento evitado no mecanismo REDD+. “O que a gente vê hoje é um sistema que se retroalimenta da desgraça do desmatamento. Se o desmatamento acabar, acabam também os projetos de crédito de carbono”, concluiu.

Norsul usou créditos para limpar operações de mineradoras 

A Companhia de Navegação Norsul está entre as maiores compradoras de créditos de carbono de áreas em conflito com a mineração. Ao todo, a empresa declarou a neutralização de 354,8 mil toneladas de CO₂ à Verra. Esses créditos serviram para compensar as emissões de grandes mineradoras que utilizam o serviço de cabotagem, como Vale, Hydro, ArcelorMittal e Braskem.

A Norsul se apresenta como a primeira empresa de navegação do país a alcançar a neutralização total das emissões, por meio do programa “Cabotagem Carbono Neutro“. A companhia usou créditos gerados pelos projetos Maísa, que foi suspenso e inativado pela Verra, e dos projetos Jari/Amapá e Jari/Pará. 

Os projetos Jari, no Amapá e no Pará, desenvolvidos pela Jari Celulose em parceria com a Biofílica Ambipar, venderam 2,9 milhões de créditos de carbono. Em 2023, uma parte do projeto no Pará foi suspensa por suspeitas de grilagem de áreas públicas e falta de consulta adequada às comunidades que vivem na região, segundo investigações do Ministério Público e da Procuradoria do Estado do Pará. Uma auditoria da certificadora Verra identificou contradições sobre as disputas fundiárias na área e a ausência de consulta às comunidades. O projeto segue ativo na certificadora, que aguarda esclarecimentos dos proponentes do projeto.  

Dentro da área dos dois projetos da Jari Celulose, existem 116 processos de mineração registrados, incluindo pedidos para explorar ouro, cassiterita, cobre, bauxita, entre outros, e em diferentes fases de concessão na ANM. Entre 2014 e 2024, a área dos projetos Jari registrou 39,5 mil hectares de desmatamento, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

À InfoAmazonia, a Vale informou que “não possui relação com o Projeto Maísa ou adquiriu créditos de carbono provenientes desse projeto”. A mineradora afirma que o próprio nome “é mencionado nos registros de aposentadoria da Verra em função de uma ação voluntária de neutralização realizada pela empresa Norsul”.

Créditos na cadeia de compensações alemã

A alemã Zukunftswerk eG, especializada em soluções de neutralização de carbono, adquiriu 162 mil créditos de sete projetos de carbono com interferência da mineração, incluindo os projetos Jari no Pará e Amapá, Maísa, Fortaleza Ituxi e do projeto Rio Preto-Jacundá – esse último é um dos mais desmatados entre os projetos de carbono analisados pela InfoAmazonia

Os créditos adquiridos pela Zukunftswerk eG foram utilizados por vinícolas, gráficas, empresas de alimentos e redes de varejo de moda alemãs, como a Peek & Cloppenburg (P&C). Três dos sete projetos de REDD+ que atendem a Zukunftswerk têm participação da Biofílica Ambipar, uma das maiores desenvolvedoras de projetos de carbono no Brasil.

Em resposta à InfoAmazonia, a Zukunftswerk eG afirmou que “não tinha conhecimento de que os projetos mencionados se sobrepõem a áreas legalmente designadas para mineração”. A consultoria informou que não adquire créditos dos projetos FSM e Fortaleza Ituxi desde 2020, e afirmou que tem deixado de adquirir créditos de projetos REDD+ “devido à crescente incerteza na estimativa das reduções reais de emissões”.

A Zukunftswerk destacou que seu processo incluiu a checagem de registro na Verra, auditorias de terceiros e reuniões com a Biofílica na Alemanha antes da aquisição dos créditos. A empresa reconhece que os conflitos com a mineração levantam riscos sobre a integridade ambiental dos créditos e afirmou que, caso surjam novas evidências de irregularidades, irá aconselhar seus clientes a revisar suas estratégias de compensação. 

“Se houver um risco crível e documentado de que uma área florestal possa ser legalmente desmatada para mineração, isso compromete o valor ambiental do crédito. Em nossa opinião, tais riscos devem ser divulgados, abordados de forma transparente pelos desenvolvedores de projetos e refletidos em processos de certificação independentes”, informou a consultoria.

Maior desenvolvedora de Carbono tem 11 projetos em conflito com mineração 

A Carbonext, considerada a maior desenvolvedora de projetos de carbono no Brasil, participou de pelo menos 11 projetos de carbono na Amazônia com algum tipo de interferência sobre áreas de mineração. Entre eles, estão os projetos Unitor, Fortaleza Ituxi e Evergreen, suspensos no ano passado por suspeitas de grilagens de terras e exploração ilegal de madeira.

Parte dessas áreas está destinada para mineração de ouro, cassiterita e ferro. Mais de 200 empresas usaram créditos desses três projetos, incluindo Spotify, o banco Itaú, a locadora de carros Localiza e a mineradora Sigma, que explora lítio para baterias de carros elétricos. Juntos, os três projetos da Carbonext venderam mais de 4 milhões de créditos de carbono no mercado voluntário.

Em 2022, a petroleira Shell investiu R$ 200 milhões na empresa para desenvolvimento de projetos de carbono na Amazônia. Em 2023, a InfoAmazonia revelou que a Carbonext firmou contratos com comunidades indígenas que foram considerados abusivos por autoridades e comunidades locais.

A mineração também avança sobre projetos de carbono que ainda não chegaram ao mercado. Em Paragominas, no Pará, o Ybyrá REDD+ Project, criado pela Carbonext e a Coopercarbon, cooperativa focada no agronegócio, promete proteger mais de 76 mil hectares de floresta amazônica distribuídos em 74 propriedades rurais. 

No papel, a área é apresentada como um ativo ambiental para geração de créditos de carbono que pode atender ao agronegócio. Na prática, porém, está sobreposta a 84 processos minerários, sendo que pelo menos quatro deles foram oficialmente autorizados pela ANM para exploração de bauxita, utilizada na produção do alumínio. 

As concessões de mineração nas áreas do projeto Ybyrá pertencem à mineradora Hydro e à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim. Em julho de 2024, em uma dessas áreas, a ANM prorrogou o prazo para que a Hydro inicie a lavra — ou seja, a retirada efetiva do minério — justamente na área declarada como “protegida” para fins de compensação climática.

Procurada pela InfoAmazonia, a Carbonext informou que adota um processo rigoroso de checagem fundiária e minerária antes de iniciar qualquer projeto de carbono. Em casos de risco identificado, “é elaborado parecer técnico especializado, que avalia a sobreposição geoespacial entre áreas do projeto e direitos minerários”. Segundo a Carbonext, informações sobre esses riscos são devidamente comunicadas às certificadoras.

Sobre o Projeto Ybyrá, a empresa afirma que áreas com maior risco de mineração foram excluídas e que os processos minerários próximos “estão há mais de 40 anos sem início de lavra, com sucessivos pedidos de prorrogação”, o que, na avaliação da Carbonext, reduz o risco de impacto sobre a permanência do carbono. 

Em relação aos projetos Unitor, Ituxi e Evergreen, investigados pela Polícia Federal, a Carbonext disse ter atuado apenas como prestadora de serviços técnicos, sem papel de desenvolvedora, e que rescindiu os contratos assim que soube das investigações. A empresa também afirmou que mantém canais de comunicação abertos com compradores e que aplica mecanismos de buffer (uma reserva de créditos) para mitigar eventuais riscos futuros.

Biofílica diz que áreas de mineração ‘são instrumentos formais contra especulação’ 

Em nota, a Biofílica Ambipar, afirmou que todas as iniciativas de REDD+ que desenvolve seguem rigor técnico “em conformidade com as exigências das certificadoras e da legislação vigente”. A desenvolvedora dos projetos de carbono Maísa e Jari afirmou que “os requerimentos minerários citados são apenas instrumentos formais e preventivos para proteger o território contra especulação fundiária, e nunca foram convertidos em lavra”.

Sobre o projeto Maísa, a empresa informou que ele foi encerrado em 2022, antes do desmatamento ocorrer na área e das denúncias de irregularidades. “Todos os créditos emitidos foram produzidos dentro das melhores práticas e verificados por auditorias independentes, permanecendo válidos e em conformidade com os padrões estabelecidos à época”.

Já a ANM disse que não há norma específica que regulamente a coexistência entre projetos de carbono e concessões minerárias na mesma área, ressaltando que “os recursos minerais pertencem à União, independente da titularidade da terra”. 

A ANM destacou que toda atividade de mineração depende de licenciamento ambiental e que, atualmente, não há exigência de consulta prévia sobre a existência de projetos de carbono nas áreas requeridas, nem integração formal com entidades certificadoras dos projetos de carbono.

Verra diz que mineração pode levar à exclusão de áreas e anulação de créditos 

A Verra, principal certificadora mundial de créditos de carbono, afirmou à InfoAmazonia que possui mecanismos para lidar com casos em que projetos de compensação climática se sobrepõem a áreas com concessões minerárias. “Antes que os créditos possam ser emitidos, os projetos passam por um processo de validação e revisão de precisão, durante o qual a Verra analisa questões como direitos sobre a terra e possíveis sobreposições com áreas de mineração”, afirmou Anne Thiel, porta-voz da certificadora.

Segundo a Verra, se uma concessão minerária estiver ativa no momento do registro do projeto de carbono, a área em questão tende a ser excluída do escopo do projeto. Já se a mineração for autorizada após o registro ou emissão dos créditos, “o projeto provavelmente terá que excluir essa parcela e assumir, de forma conservadora, que toda a emissão realizada na área foi perdida”. Em casos assim, a certificadora considera que há uma “reversão inevitável” — ou seja, a floresta que deveria estar protegida foi desmatada —, o que pode levar até à interrupção do projeto. “Os riscos principais em um cenário como esse são que o número de concessões ativas resulte em reversão e possível término do projeto”, completou a representante da Verra.

A certificadora afirma que possui “requisitos robustos de salvaguardas ambientais e sociais” para garantir que os projetos não gerem impactos negativos às comunidades ou à natureza. No entanto, pondera que os impactos da mineração “não são responsabilidade do proponente do projeto”, a menos que este também seja o detentor da concessão minerária, algo que considera improvável. “Ainda assim, se uma concessão é concedida ou se torna ativa em uma área de projeto, isso pode alterar a base de cálculo da integridade ambiental dos créditos emitidos”.

Sobre os casos citados pela reportagem – como os projetos Maísa, Jari, Fortaleza Ituxi e Unitor, que sofreram suspensões ou estão sob investigação –, a Verra afirmou que apenas o Maísa foi oficialmente encerrado, a pedido do próprio desenvolvedor. Neste caso, os créditos de reserva do projeto, chamado de buffer, foram cancelados, e a empresa responsável deverá repor os créditos. 

Os demais casos seguem em análise de forma confidencial, e a certificadora informou que “a Verra não comenta sobre projetos que estão sob revisão aberta”, afirmou a certificadora.

Questionada sobre a possibilidade de cancelar retroativamente créditos já vendidos quando surgem evidências de violações socioambientais graves, a Verra respondeu que esse tipo de revisão é possível e está previsto em seu regulamento. 

Especificamente sobre o projeto FSM-REDD+, que teve parte de sua área liberada recentemente para garimpo de ouro, a Verra disse que espera que os responsáveis incluam o episódio no próximo relatório de monitoramento. Ainda assim, informou que irá revisar as informações e poderá abrir uma investigação com base em seu procedimento de queixas. “Nosso processo de reclamações nos permite lidar com denúncias a qualquer momento”, afirmou. (leia respostas da Verra na íntegra)

Empresas explicam aquisição dos créditos

O banco Itaú adquiriu novos créditos para compensar as emissões de 2022 originalmente do projeto Ituxi, suspenso por irregularidades. A instituição financeira alega que, na época das aquisições, o projeto estava em conformidade com os requisitos do banco.

“O projeto em questão, no qual a Carbonext foi o proponente responsável pela submissão na plataforma, passou por esse processo [de certificação] e por auditoria externa, obtendo também registro no Verra, além de rating A no Sylvera [empresa de classificação de projetos de carbono], em linha com as melhores práticas de diligência do mercado quanto a questões técnicas e de geração de créditos de carbono. Em razão dos acontecimentos mencionados por vocês aqui, à época o Itaú decidiu recompensar as emissões de 2022 que se referiam a esse projeto, cerca de 25 mil toneladas de carbono, por meio da aquisição de novos créditos de outros projetos”, informou a assessoria do Itaú-Unibanco.

O iFood informou que, desde 2022, não realiza novas aquisições de créditos de carbono, concentrando seus esforços em ações próprias de descarbonização. “As compensações realizadas anteriormente contaram com a atuação de consultorias especializadas e utilizaram créditos de projetos certificados por entidades internacionalmente reconhecidas”, afirmou a plataforma de entregas.

“Entre 2021 e 2023, o iFood adquiriu créditos de carbono de projetos como Maísa, Jari e Fortaleza Ituxi, por meio de fornecedores como Eccaplan e Moss, e esses projetos não fazem mais parte do portfólio da empresa”, disse, em nota.

A locadora de carros Localiza disse “que não foi informada acerca da sobreposição de áreas com registros de mineração na ANM ao adquirir os créditos de carbono do projeto Fortaleza Ituxi”. Após as irregularidades da área, “realizou uma nova compra de créditos de outro projeto para sua substituição”.

A a ArcelorMittal Brasil informou que não teve participação na compra dos créditos de carbono dos projetos Maísa e Jari, e que “a aquisição foi feita por uma empresa terceirizada, a Norsul, para compensar emissões do transporte marítimo, sem ciência prévia da ArcelorMittal”. A empresa confirmou ter adquirido uma pequena quantidade de créditos (equivalente a cinco toneladas de CO2) do projeto FSM-REDD, no Mato Grosso, e afirmou que adota um programa de gestão de fornecedores com auditorias, due diligence e monitoramento para assegurar o cumprimento de legislações e protocolos internos.

Procurada pela InfoAmazonia, a Moss informou que deixou de intermediar créditos do projeto FSM-REDD e que, à época das transações, realizou as devidas diligências fundiária e minerária, sem identificar impedimentos. Sobre o projeto Fortaleza Ituxi REDD+, a empresa confirmou ter comercializado créditos antes da suspensão pela Verra em 2024, mas afirma ter comunicado os compradores institucionais após o ocorrido, ressaltando que os créditos já aposentados permanecem válidos.

A Moss destacou, ainda, que os riscos fundiários e minerários são de responsabilidade dos desenvolvedores dos projetos e dos auditores independentes, e que a integridade dos créditos é garantida pelo mecanismo de buffer da Verra, que cobre eventuais perdas de permanência. Atualmente, a empresa diz não atuar mais na intermediação de créditos de terceiros e afirma revisar continuamente suas políticas internas de governança e diligência prévia.

A Braskem, que também teve suas emissões compensadas por meio da Norsul, informou que “solicitou esclarecimentos à certificadora responsável pelo registro de tais projetos e à detentora original dos créditos (a Norsul)”.

O Banco Votorantim (BV) afirmou que adquiriu créditos do projeto Maísa em 2021, quando o projeto estava ativo e devidamente validado e verificado segundo os padrões internacionais da certificadora Verra, sem que houvesse, à época, qualquer menção à sobreposição com processos minerários nas auditorias técnicas disponíveis. O BV informou ainda que, diante dos questionamentos recentes sobre projetos REDD+, tem conduzido revisões internas contínuas e está avaliando formas de compensar as emissões anteriormente neutralizadas com créditos do Maísa.

A mineradora Hydro, que tem concessão para minerar bauxita na área do projeto Ybyrá, informou que as áreas para mineração são anteriores ao projeto de carbono. “Entendemos que a responsabilidade de avaliar a compatibilidade de um projeto de carbono REDD+ com atividades existentes ou publicamente conhecidas (como atividades de mineração que podem ser verificadas na base de dados da ANM) na área do projeto recai sobre a entidade que desenvolve o projeto de carbono”, afirmou a mineradora, que disse não ter sido “contatada pela empresa Carbonext, responsável pelo Projeto REDD+ Ybyrá”. 

A empresa de navegação Norsul informou que tomou conhecimento das possíveis irregularidades nos projetos de carbono Maísa e Jari em junho de 2023 e, desde então, suspendeu imediatamente o uso dos créditos associados a essas áreas: “quando a empresa tomou conhecimento das irregularidades, todos os créditos associados a esses projetos foram suspensos e não são mais contabilizados nas práticas de neutralização da Norsul”, informou em nota à reportagem. Segundo a Norsul, os créditos haviam sido adquiridos junto à Biofílica, com certificação da Verra.

A Uber informou que desde 2023 não utiliza mais créditos de carbono da Anaconda Carbon. Questionada pela reportagem, a CBA disse que não vai se manifestar.

InfoAmazonia também entrou em contato com todas as outras empresas citadas na reportagem, desenvolvedoras e compradores dos projetos de carbono: Google, Tim, Sigma Lithium, AstraZeneca, Maísa Agroindustrial, Florestal Santa Maria, Boeing, Jari Celulose, Giorgio Armani, 3A Mining, Anaconda Carbon S.A. e Spotify. Mas não obtivemos retorno até esta publicação.


Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Fábio Bispo
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori
Colaborou com a edição Andrés Bermúdez Liévano (CLIP)

O trabalho da InfoAmazonia e do CLIP na construção da base de dados foi apoiado pelo Pulitzer Center.

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