Hoje, 30 de junho de 2025, marca o que seria o 94º aniversário de Gilberto Mendonça Teles, poeta e crítico literário brasileiro cuja obra continua a inspirar reflexões profundas sobre linguagem, realidade e filosofia. Publicamos o texto “Entre o Latente e o Mundo: Filosofia como Abertura do Ainda-não”, de Severino Ngoenha, que dialoga diretamente com o poema “Revolução”, de Teles, enviado pelo filósofo Marcos Carvalho Lopes. A obra de Teles, com sua provocação sobre o poder das palavras, segue instigando debates filosóficos e poéticos, como os que Ngoenha explora ao propor o conceito de Reladolia. Esta publicação celebra a memória de Teles e sua contribuição para o pensamento crítico, enquanto convida os leitores a refletirem sobre a potência da linguagem na construção de novos mundos.

REVOLUÇÃO
Ao Marcos Carvalho Lopes
Um dia começou a pensar que o mundo
poderia ser mais original se houvesse
uma revolução pela linguagem,
trocando-se de repente o nome
das coisas, de maneira que não ficasse
vulgar a compreensão da vida,
fácil demais para os cientistas
e para os poetas metidos a filósofos.
Se braço fosse chamado de caxumba
caxumba de saco e este de pimenta
pimenta fosse olho e este cachimbo
cachimbo gaivota e esta distância,
assim por diante até mudar-se a forma
de todas as palavras,
o homem teria
de investir mais na criação de seu poema
e seu poema seria um novo mundo.
Assim a Europa seria o Brasil e a gente
nem precisaria aprender a língua deles.
Rio, madrugada de 25.10.2011
Gilberto Mendonça Teles
ensaio de Severino Ngoenha
Depois da publicação do meu artigo sobre a cracia e a necessidade de pensar novos modos de conceber o poder, fui interpelado, com lucidez fraterna, pelo teólogo Giovanni Meloni. Sugeriu-me que talvez fosse necessário ultrapassar a própria ideia de cracia — marcada pela lógica do poder e da dominação — para entrar na dolia, no dolus, isto é, no campo do serviço, da entrega, da responsabilidade. Essa interpelação fecunda levou-me a desenvolver o conceito de Reladolia, uma nova tentativa de nomear uma relação política que não se fundasse no poder que impõe, mas no serviço que media e que serve. Não se tratava de uma simples substituição terminológica, mas de uma reconfiguração ontológica da convivência humana.
Porém, como toda criação conceitual que pretende pensar o porvir, essa proposta gerou novas reações. Entre elas, a do filósofo brasileiro Marcos Carvalho Lopes, que me interpelou não através de um tratado, mas por meio de um gesto poético: o envio de um poema antigo, recebido há mais de dez anos de um amigo poeta, Gilberto Mendonça Teles, em que se advertia contra o risco de acreditar que a mera troca de palavras poderia alterar o real. A crítica era séria, quase grave: mudar as palavras sem tocar nas estruturas profundas da realidade poderia tornar-se um exercício de retórica vazia — um flatus vocis.
A advertência punha em causa o risco que corre a filosofia quando se limita à invenção terminológica sem ressonância na vida concreta. Marcos levou a provocação a sério: respondeu com dois textos de Michel Foucault, que o ajudaram a refletir sobre linguagem, saber e poder.[1] Mais tarde, fundou a plataforma Filosofia Pop, onde continua a trabalhar pela restituição de uma filosofia pública, popular e rigorosa.
Ainda hoje, Marcos reconhece que essa inquietação, entre a palavra que nomeia sem efeito e do conceito que pode fundar- o acompanha. Ele aponta para o risco de que o conceito de Reladolia acabe por ser apenas mais uma dessas palavras de filósofos que flutuam acima do mundo, sem enraizamento ontológico nem consequência prática.
Essa provocação não podia ser ignorada. Ela obrigou-me a regressar à questão fundamental da filosofia: qual é o estatuto do conceito? Será a criação conceitual apenas um jogo linguístico sem lastro no real? Ou será que o conceito, mesmo quando aparentemente utópico, antecipa possibilidades ainda não realizadas, mas por vir? É neste ponto que me encontro com Deleuze, quando afirma que a tarefa da filosofia é criar conceitos. Mas essa criação não é gratuita: é um gesto que nomeia o que ainda não tem nome, que dá forma ao latente, que vislumbra o invisível no visível.
Há, sem dúvida, um risco constante de sermos apenas criadores de palavras ocas. Mas recusar esse risco em nome de uma prudência estéril seria recusar à filosofia a sua mais alta vocação: abrir mundos possíveis através da linguagem. Nem todas as palavras nomeiam o real já existente — mas algumas palavras fundam o real que ainda está por vir. Pensar, por exemplo, a democracia como “governo do povo” foi, durante séculos, um gesto utópico, um anacronismo conceptual. A experiência democrática da Grécia foi breve, limitada, elitista, e caiu rapidamente no esquecimento. Mas o conceito sobreviveu. Foi retomado, reformulado, e muito mais tarde encontrou terreno para realizar-se de outras formas, noutros contextos. O mesmo se pode dizer do comunismo marxiano ou da cidade do sol de Campanella: os conceitos anteciparam realidades que ainda não estavam disponíveis, mas que criaram caminhos de imaginação política, de crítica, de desejo.
O desafio a enfrentar é, pois, a tensão entre o risco do vazio e a potência do conceitual: criar um vocábulo capaz de soerguer formas de vida, não apenas nomear, mas preparar o terreno para um novo modo de existir.
Essa antecipação, no entanto, não é sonho vazio. Ela opera numa tríplice temporalidade: o Kronos da história factual, o Kairos da ocasião propícia, e o Eschaton como horizonte escatológico de plenitude. O conceito filosófico, quando é verdadeiro, inscreve-se nesses três tempos: responde ao Kronos com crítica, ao Kairos com decisão, e ao Eschaton com esperança estruturada. Só nesse entrecruzamento temporal a criação de conceitos pode cumprir sua tarefa: responder ao real, aproveitar a oportunidade e antecipar um porvir. Por isso, mais do que resistência, o conceito é fundação e mediação.
No caso da Reladolia, o conceito nasce de uma vivência africana profunda — das relações comunitárias, do Ubuntu, da responsabilidade mútua — como Utopia Critica (Eboussi Boulaga)- que quer falar para além da África. Não se trata de um exotismo regional, mas de uma ontologia situada que se oferece como linguagem universal. A filosofia que parte da margem não o faz por ressentimento, mas por fundação. Ela sabe que, como em Vítor Hugo, há utopias que são premonições — não delírios de um mundo irreal, mas prefigurações do mundo que ainda não chegou.
A Reladolia visa fundar uma política baseada no cuidado e no serviço, a partir da margem situada. E esse gesto permanece filosófico mesmo que dependa do tempo para se concretizar.
É neste sentido que continuo a defender, com convicção filosófica, a criação de conceitos que hoje parecem deslocados, mas que amanhã poderão ser centrais. Porque a filosofia não existe apenas para interpretar o mundo presente (Marx): ela é chamada a abrir as sendas por onde o mundo poderá passar. Mesmo que essas sendas não sejam percorridas de imediato, elas não deixam de ser vias possíveis para uma humanidade que busca, entre a diferença e a comunhão, uma nova maneira de habitar o comum.
Portanto, reafirmo: a filosofia não se perde quando cria o possível. Ao contrário, ela cumpre a sua missão profunda quando nomeia realidades ainda não existentes.
A criação de palavras como Reladolia não é vaidade terminológica, mas gesto de fundação num tempo plural — cronológico, oportuno, escatológico. É por isso que insisto: a filosofia, ao partir da margem, persiste como gesto de coragem e de imaginação, e mantém viva a vocação de instituir futuros. Ao abraçar tanto o risco do flatus vocis quanto o dever de nomear, ela reconstrói a confiança na ideia de que há realidades por vir, e que cabe aos filósofos — africanos, brasileiros, teólogos, poetas ou europeus — ativá-las, com palavras que pousam no tempo como sementes de mundo.
Assim, a filosofia que parte do Sul, que emerge das margens, tem o dever de nomear — não para disfarçar a realidade, mas para anunciá-la, reconfigurá-la, e fundar novas possibilidades. E se os conceitos que criamos hoje não têm ainda equivalência no mundo visível, isso não significa que falhamos. Significa apenas que estamos a construir o tempo que ainda não veio.
Severino Ngoenha
[1] O texto dedicado a Gilberto Mendona Teles é “O Sentido do Agora (ou Foucault lendo Kant): crítica, ontologia de nós mesmos e ontologia do presente”, publicado na revista Inquietude, v. 2, n. 1 (2011). O texto está disponível neste link: https://drive.google.com/file/d/0B4AeuuKw4oJnTlgwRXo5cDNVaGs/view e também é ua capítulo do livro Máquina do Medo, disponível aqui: http://filosofiapop.com.br/wp-content/uploads/2015/08/M%C3%A1quina-do-Medo-PUC-2013.pdf (nota de Marcos carvalho Lopes)
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