A crise da saúde pública no Distrito Federal tem mobilizado diferentes setores da sociedade civil, profissionais da saúde e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O debate sobre os rumos da política pública foi tema do fórum A saúde do DF em debate: reflexões e propostas para o SUS, no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) realizado no dia 27 de junho.
Atualmente, cerca de 67,5% da população do Distrito Federal depende exclusivamente do SUS, o que representa mais de 2 milhões de pessoas, segundo dados da própria Secretaria de Saúde do DF (SES-DF). Apesar disso, o cenário é de subfinanciamento, falta de pessoal, unidades superlotadas e denúncias frequentes de precarização dos serviços. Para 2025, o Governo do Distrito Federal destinou pouco mais de R$ 10,4 bilhões para a saúde — o equivalente a cerca de 12% do orçamento total, percentual ainda próximo do mínimo constitucional exigido.
Para entender o diagnóstico desse cenário e as possíveis saídas, o Brasil de Fato DF conversou com a médica infectologista, Lívia Ribeiro, presidenta do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) e integrante da Frente em Defesa da Saúde do DF, que é uma articulação que surgiu em 2024 no contexto de epidemia da dengue. Além do CRM-DF, a Frente reúne mais 12 entidades, entre conselhos, associações e sindicatos para tratar da pauta da saúde pública na região.
Confira a entrevista.
Como avalia a situação atual da saúde pública no Distrito Federal? Quais são os principais fatores que explicam o atual cenário de crise?
Lívia Ribeiro – Acredito que sempre se discutiu muito a falta de profissionalização na gestão. Muito se fala sobre a ausência de uma administração adequada no Sistema Único de Saúde, especialmente aqui no Distrito Federal. No entanto, ao analisarmos o contexto, percebemos que Brasília é uma cidade relativamente jovem, marcada por repetidos erros na condução das políticas públicas de saúde. Esses erros decorrem, em grande parte, da falta de priorização. E quando falamos em priorização, falamos também de investimento.
O DF é uma unidade da federação com um orçamento elevado — desde 2019, por exemplo, o orçamento praticamente dobrou. Ainda assim, os investimentos em saúde continuam próximos do mínimo constitucional. Ou seja, a arrecadação cresceu, mas isso não se refletiu no aumento do investimento em políticas públicas. Essa escolha impacta diretamente na qualidade dos serviços: há menos contratações, pouca valorização dos servidores e déficit de infraestrutura.
Hoje, os últimos hospitais construídos na rede têm mais de 20 anos, apesar do crescimento populacional. A atenção primária também recebe investimentos muito escassos. Com isso, os problemas se acumulam. O contingenciamento recente de recursos do Fundo de Saúde é mais um fator de preocupação: a tendência é que o cenário piore.
“Percebemos que Brasília é uma cidade relativamente jovem, marcada por repetidos erros na condução das políticas públicas de saúde”.
Considerando que mais de dois milhões de brasilienses dependem exclusivamente do SUS, como avalia esse contingenciamento de recursos do Governo do Distrito Federal (GDF) que afeta principalmente a saúde? A senhora acredita que concursos públicos e investimentos estruturais são os caminhos mais urgentes para a melhoria da rede pública?
Sim, sem dúvida. Sempre se fala que a folha de pagamento da Secretaria de Saúde é alta, e que isso deixaria pouco espaço para outros investimentos. Mas a saúde é feita de gente para gente. Sem profissionais qualificados e valorizados, há evasão de trabalhadores, e muitos acabam buscando oportunidades em outras instituições.
É essencial que se abra um concurso público, mas ele deve vir acompanhado de uma revisão dos planos de cargos e salários. Para algumas categorias, o salário da Secretaria ainda é competitivo em relação ao mercado. Para outras, é urgente reestruturar a remuneração.
Hoje, por exemplo, o salário oferecido pelo Instituto de Gestão Estratégica (Iges-DF) para a categoria médica é maior do que o da Secretaria de Saúde — e ambos estão abaixo da média da rede privada. Para outras categorias, há realidades diversas, mas a falta de priorização na contratação também afeta profissionais que são fundamentais nas linhas de cuidado.
Além disso, é necessário investir em infraestrutura. Muitas unidades têm estruturas obsoletas. Há UBSs superlotadas, com diversas equipes de saúde da família dividindo espaços pequenos. Em muitos casos, médicos e enfermeiros precisam se revezar para atender a população. Soma-se a isso a precariedade no transporte sanitário, na rede de diagnóstico e em outros serviços que também precisam ser valorizados.
Sem esse investimento, continuaremos a ocupar os piores indicadores: maior tempo de espera por consultas especializadas, pior cobertura em saúde bucal, entre outros.
“Infelizmente, o DF tem acumulado títulos de pior desempenho em várias áreas da saúde pública”.
Qual é o papel da Frente em Defesa da Saúde do DF diante da atual crise no sistema público do DF, especialmente considerando a precarização dos serviços e a dificuldade de acesso da população ao SUS?
A Frente é formada por diversas entidades que, apesar de suas pautas específicas, têm muitas lutas em comum — especialmente a defesa do SUS. Começamos a nos organizar no ano passado, motivados inicialmente pela epidemia de dengue e pela forma improvisada com que a Secretaria de Saúde lidou com a situação, sem estrutura adequada.
Depois, veio a superlotação causada por doenças respiratórias infantis, uma situação que se repete no início de todo ano e que nunca é enfrentada de forma efetiva pela gestão. Mais recentemente, em 2024, houve o decreto do GDF criando um comitê gestor da saúde sob coordenação da Secretaria de Economia e sem participação do controle social. Após pressão, houve recuo — mas não como esperávamos. O decreto foi modificado para criar um comitê consultivo com a presença do Conselho de Saúde, mas os membros indicados ainda levantam questionamentos: representam corporações, e não necessariamente servidores de carreira ou pessoas com experiência em saúde pública.
Nosso objetivo na Frente é pensar de forma estruturada os grandes eixos da saúde no DF — atenção primária, secundária, urgência e emergência, financiamento — e a partir daí produzir uma carta propositiva com encaminhamentos ao Poder Executivo, à Câmara Legislativa e aos órgãos de controle, como o Ministério Público.

Como a Frente tem se articulado com instâncias como o GDF, o Ministério Público, a CLDF e os Conselhos de Classe para pressionar por mudanças estruturais na saúde pública do DF?
Temos uma articulação constante com esses órgãos. Os avanços ainda são tímidos, mas sabemos que a situação estaria pior se não estivéssemos organizados. Com a Câmara Legislativa, em especial com a Comissão de Saúde, o diálogo tem sido muito positivo desde o ano passado — na gestão anterior com Gabriel Magno e agora com Max Maciel. Os deputados são sensíveis às pautas da Frente e participam ativamente das reuniões. No entanto, sentimos que ainda há poucos parlamentares que de fato compreendem a defesa do SUS como prioridade. Faltam votos para barrar retrocessos impostos pelo Executivo.
“Sentimos que ainda há poucos parlamentares que de fato compreendem a defesa do SUS como prioridade”.
O Fórum A saúde do DF em debate pretende produzir um relatório com propostas para o fortalecimento do SUS? Quais encaminhamentos concretos serão dados a essas propostas, e como a Frente pretende acompanhar a resposta dos órgãos públicos?
A ideia é fazer um consolidado pós-evento, em que a gente analise todas as propostas que surgirem nos debates e sistematize em um documento com diretrizes concretas. Esse material deve ser encaminhado ao Conselho de Saúde do DF, que reúne representantes da gestão, dos trabalhadores e dos usuários do SUS. A partir disso, também pretendemos encaminhar o documento à Secretaria de Saúde, ao Poder Legislativo e aos órgãos de controle, como o Ministério Público.
Entendemos que essa carta propositiva é uma forma de sermos propositivos, de contribuir com sugestões concretas para a superação dos problemas estruturais da rede de saúde. Nosso foco é abordar pontos como atenção primária, atenção secundária, rede de urgência e emergência, e também o financiamento.
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O post ‘Sem profissionais e estrutura, não há SUS que resista’, afirma presidenta do CRM-DF apareceu primeiro em Brasil de Fato.