Tradição que alimenta: um dia com as guardiãs dos saberes no Sapê do Norte

Foto: Breno Ribeiro

Nesta quarta-feira, fui até a comunidade quilombola Coxi Sapê do Norte, em Conceição da Barra, Espírito Santo, para conhecer de perto a história e a produção de um alimento que é muito mais que comida: é símbolo de resistência, identidade e fonte de renda para dezenas de famílias. Ao lado da equipe do projeto IdentidadES, pude acompanhar a rotina das mulheres que transformam a mandioca em um dos maiores orgulhos da culinária quilombola capixaba.

Da esq. para a dir.: Aldiceia Costa, Andreia Costa, Alessandro Eller, Domingas Verônica e Beatriz Florentino
Foto: Breno Ribeiro

Fomos recebidos pela presidente da Associação das Produtoras Quilombolas de Beiju do Sapê do Norte, Domingas Verônica, que estava acompanhada da matriarca Beatriz Florentino e de Manoel Messias, responsável pelo plantio e colheita da mandioca. Também nos receberam Andreia Costa e Aldiceia Costa, integrantes da associação. O acolhimento foi imediato — e, já no primeiro contato, percebi que a relação entre tradição, família e comunidade é a essência de tudo que fazem ali.

Dona Beatriz, com seus olhos marejados, compartilhou a preocupação que sentiu ao saber que iríamos visitá-los: “Eu estava preocupada quando soube que vocês viriam, estava nervosa… Mas depois que chegaram, eu me senti família”. E foi assim que nos sentimos também: parte daquela história.

Dona Beatriz, matriarca na comunidade de Sapê do Norte | Foto: Breno Ribeiro

Acompanhei todas as etapas da produção do beiju, que começa com o plantio cuidadoso da mandioca. O cultivo é feito respeitando fatores como fases da lua, chuva e umidade, para garantir a melhor safra. Após cerca de 12 meses, a colheita é realizada e as raízes seguem para a casa de farinha — ou quitungo, como chamam — onde a mandioca é descascada, ralada, prensada, descansada para eliminação das toxinas e, finalmente, transformada em massa, goma e polvilho.

Foto: Breno Ribeiro

No momento mais aguardado, vi o beiju sendo preparado na chapa: massa polvilhada, aquecida, prensada, dobrada e cortada. Provei o beiju ainda quente, direto do tacho — uma explosão de sabor simples e marcante, carregada de história.

Foto: Breno Ribeiro

Durante a visita, entendi como a tradição do beiju atravessa gerações. Domingas contou que aprendeu a receita com a mãe e hoje ensina a filha de 14 anos, para que o saber-fazer continue vivo. Mais do que uma técnica, é a transmissão de valores e a reafirmação da identidade quilombola, desde o século XIX, quando as comunidades se estabeleceram no Sapê do Norte, região que abrange partes dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus.

Indicação Geográfica

A conquista da Indicação Geográfica (IG) para o beiju do Sapê do Norte, publicada pelo INPI em agosto de 2024, é um marco histórico para essas famílias. A IG reconhece oficialmente que as características únicas do produto estão ligadas à região, agregando valor e possibilitando a abertura de novos mercados. É a primeira IG do Brasil com delimitação que contempla comunidades quilombolas, e a 90ª Indicação de Procedência reconhecida no país.

Segundo o INPI, essa tradição vem de pelo menos o século XIX, e todas as etapas são realizadas pelos quilombolas, desde o preparo do solo até a finalização do produto — que pode ganhar recheios como coco e amendoim. As famílias comercializam o beiju em feiras, comércios locais e por encomenda, mas também promovem o Festival do Beiju, que desde 2003 fortalece a cultura local e atrai turistas.

O Sebrae/ES foi parceiro fundamental nesse processo, auxiliando a associação em cada etapa, desde a preparação da documentação até a criação do selo de origem controlada, com consultoria para adequar a produção aos requisitos do INPI. A Cooperativa dos Produtores Agropecuários da Bacia do Cricaré (COOPBAC) também apoiou a estruturação da associação e a organização para emissão do primeiro lote com a IG.

“Esse selo abriu um leque de oportunidades para nós, que há anos buscamos um reconhecimento digno e humanitário para nossa cultura e tradição”, celebrou Domingas. “A IG vai beneficiar 32 comunidades, envolvendo cerca de 40 famílias. A partir dela, teremos acesso a melhores políticas públicas para incentivar que nosso negócio continue gerando renda e oportunidades.”

A visita foi realizada pela equipe formada por mim, Alessandro Eller, pelo produtor Breno Ribeiro e pelos cinegrafistas Bernardo Bourguignon, Danyllo Cabral e Cimar Barbosa. Em breve, você confere todo o conteúdo nos canais da TV Vitória, pelo projeto IdentidadES.

Mais que um alimento, o beiju do Sapê do Norte é a prova de que a tradição pode ser força para construir futuro — e que reconhecer o valor dessas histórias é fundamental para manter vivas as raízes do nosso Espírito Santo.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.