Cerca de cinco mil trabalhadores do campo e da cidade de diversas regiões da Bahia, Minas Gerais, Sergipe e Espírito Santo celebraram em Bom Jesus da Lapa, no Oeste baiano, a 48ª Romaria da Terra e das Águas (RTA). Com o tema “Cultivar e guardar a criação construindo caminhos do bem viver” e o lema “Que todos tenham vida em abundância” (João 10, 10), o encontro, realizado entre os dias 4 e 6 de julho, marca a comunhão entre fé e organização popular na busca de caminhos concretos para mudanças sociais. Na carta-compromisso firmada ao fim do espaço, os romeiros apontam desafios políticos, sociais e econômicos dentro e fora do país e também denunciam a criminalização de lutadores populares.
Além dos momentos religiosos, como a missa de abertura, presidida por Dom Rubival, bispo da Diocese de Bom Jesus da Lapa, a romaria também contou com feiras de agricultura familiar e artesanato, além de espaços de discussão chamados de “plenarinhos”, em que os fiéis puderam debater temas como defesa da terra e território, justiça climática e o esperançar das juventudes. Já na Via-Sacra, uma caminhada realizada pelas ruas de Bom Jesus da Lapa, os romeiros carregaram seus estandartes, cartazes e faixas para denunciar os diversos conflitos que enfrentam nos seus territórios e reafirmar sua disposição para a luta.

Para Mauro Jakes Farias, membro da coordenação colegiada da Comissão Pastoral da Terra (CPT-Bahia) e da coordenação da RTA, a conjuntura adversa que perpassa o Brasil e o mundo fez com que mais pessoas se engajassem no encontro neste ano. “Isso tem feito com que os povos das comunidades rurais, urbanas e dos territórios tradicionais participem com maior força nesta romaria. Neste sentido, buscando forças para superar os desafios de forma conjunta, consideram a romaria como espaço de animação da fé, fortalecimento das lutas e resistências dos povos, como também, da oportunidade de troca de experiências, saberes e construção de alternativas para os desafios presente”, destaca.
“Enquanto a romaria continuar sendo este espaço onde os povos e camponeses possam expressar suas dores, mas que, sobretudo, possam se ajuntar para fortalecer a esperança na continuidade da luta, este espaço continua sendo entendido como uma interligação de fé e de luta popular”, completa Abeltânia Santos, agente da CPT Bahia e que também compõe a coordenação da RTA.
Denúncia de injustiças
Na carta-compromisso, os trabalhadores refletem sobre diversos pontos da conjuntura nacional e internacional, apontando preocupações “com as ofensivas bélicas e crescimento de todas as formas de violência, provocadas pelas potências imperialistas que visam impor ao mundo suas regras de dominação e aprofundar a exploração dos povos”. Além disso, o documento denuncia o genocídio promovido por Israel contra o povo palestino e salienta a importância da unidade entre os povos mais vulneráveis.
“A luta em defesa da autodeterminação dos povos, pela soberania e a paz, a partir da unidade dos povos marginalizados, se torna um imperativo do atual período histórico”, destaca a carta.
Já em relação ao Brasil, os romeiros apontam o aumento da desigualdade social e da concentração de renda, além de denunciar medidas em discussão ou já aprovadas pelo Congresso Nacional que vão na contramão dos interesses do povo, como a lei do marco temporal (1.4701/2023), o Projeto de Lei (PL) 2159/2021, conhecido como “PL da Devastação”, e a resistência dos parlamentares ao fim da escala 6×1 e à taxação dos super ricos.
O documento também denuncia o avanço da mineração e do agronegócio, sua relação com o agravamento dos conflitos no campo e a criminalização das lutas populares. O texto destaca as prisões arbitrárias de Vanderlei Silva e Solange Moreira, militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e lideranças do Fecho de Pasto Brejo Verde, em Correntina, e a do Cacique Suruí Pataxó, da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, no sul da Bahia.
“Reivindicamos a imediata libertação dos nossos companheiros/a e denunciamos todas as iniciativas de criminalização da luta popular. E exigimos respeito e demarcação dos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais, fortalecimento das políticas públicas de convivência com os biomas, e uma democracia efetivamente popular, que favoreça a unidade e organização da luta do campo e da cidade pelo Bem Viver”, aponta o documento.

Para Cleusa Alves, da Cáritas de Bom Jesus da Lapa e membro da coordenação da RTA, as denúncias apontadas na carta partem da reflexão de que, se Deus quer a vida em abudância para todas as pessoas, a romaria é espaço para denunciar as causas que são geradoras de morte e destruição.
“A Romaria joga luz, traz à tona todas as situações invisibilizadas e negadas que o povo sofre cotidianamente. Se o capitalismo neoliberal preconiza o crescimento econômico e a acumulação de lucros nas mãos de alguns, a Romaria afirma que o Projeto de Jesus vai em outra direção: a defesa incondicional da vida, a partir dos pobres e excluídos”.
48 anos ecoando o clamor do povo
Em 1977, um grupo de 120 lavradores e lavradoras viajaram de caminhão pau de arara da Chapada Diamantina até o Santuário de Bom Jesus para expor o seu desespero pela grilagem de suas terras e ao mesmo tempo pedir força ao Bom Jesus para voltarem e continuarem na luta. Foi dessa forma, conta Albetânia Santos, que se configurou a primeira Romaria da Terra e das Águas, inicialmente chamada de Missão da Terra.
Nesta 48ª romaria, a agente da CPT ressalta que o encontro segue ecoando “o mesmo clamor de inúmeras comunidades e territórios que sofrem expropriação, violência e ameaças”. E que é a crença em um Deus que está ao lado do povo que os mantém de pé para seguirem em luta.
“Como bem expressou uma romeira no plenário de Terra e Territórios ‘a gente acredita é no Deus que está encarnado na vida e na luta do povo, que está lado a lado com a gente; isso é o que nos move, essa é a mística que nos faz seguir em frente e ter esperança’.”
Confira a íntegra da Carta da da 48ª Romaria da Terra e das Águas:
Bom Jesus da Lapa, 06 de julho de 2025.
“É necessário estar ao lado das vítimas da injustiça ambiental e climática, esforçando-se para pôr fim à insensata guerra contra a nossa Casa Comum, que é uma terrível guerra mundial. Exorto a todos a trabalharem e a rezarem para que ela abunde novamente de vida”. (Papa Francisco)
Entre os dias 04 e 06 de julho de 2025, em Bom Jesus da Lapa – Bahia, reunimos cerca de cinco mil romeiros/as, vindos das comunidades eclesiais, organizações pastorais, sociais e populares das dioceses do Centro Oeste, Centro Norte, Sul, Extremo Sul, Sudoeste da Bahia, Norte e Nordeste de Minas Gerais, Sergipe e Espírito Santo, para celebrar a 48ª Romaria da Terra e das Águas. Inspirados pela Campanha da Fraternidade este ano, tivemos como tema “Cultivar e guardar a criação construindo caminhos do bem viver” e lema “Que todos tenham vida em abundância” (João 10, 10). O grande encontro favoreceu a acolhida de nós, romeiros/as, nossas lutas, resistências e solidariedades na construção de alternativas reais para o cuidado da Casa Comum, nossos territórios como espaços livres de Bem Viver.
Em comunhão, neste lugar sagrado, refletimos sobre os grandes desafios do contexto político, econômico e social no mundo e no Brasil. Partilhamos preocupações com as ofensivas bélicas e crescimento de todas as formas de violência, provocadas pelas potências imperialistas que visam impor ao mundo suas regras de dominação e aprofundar a exploração dos povos, aumentando as possibilidades de uma Terceira Guerra Mundial e os riscos iminentes de um conflito nuclear de destruição em massa. Ganham proeminência, em todo o mundo, movimentos de Extrema Direita associados a esse projeto de morte e destruição, sem suficiente resistência da opinião pública mundial e dos organismos multilaterais. O genocídio explícito vivido pelo povo palestino, imposto pelo Estado de Israel com apoio da maioria dos países do Ocidente, expressa a tragédia humanitária em curso e os perigos que vivem os povos da periferia. A luta em defesa da autodeterminação dos povos, pela soberania e a paz, a partir da unidade dos povos marginalizados, se torna um imperativo do atual período histórico.
Preocupa-nos o cenário brasileiro, marcado pelo aprofundamento da desigualdade, onde apenas 1% da população controla 50% da riqueza produzida. Tem essa minoria maior influência e domínio da política brasileira, na qual 72% do Congresso Nacional representam as classes dominantes, com 160 fazendeiros e 273 empresários. Nesse arranjo institucional essa maioria parlamentar tem como projeto a manutenção e ampliação dos privilégios das classes dominantes e aprofundamento das desigualdades e violências contra os interesses do povo.
O atual Congresso rejeita medidas de interesse da maioria popular e adota uma série de medidas antipopulares que mantêm o ajuste fiscal, intensifica a violência e expande a miséria popular. A lei do marco temporal (1.4701/2023) impede o reconhecimento e demarcação de territórios indígenas retomados pós-Constituição de 1988, declaradamente inconstitucional. Pautas de desejo popular são rejeitadas, como a proposta envolvendo o fim da escala de trabalho 6×1 sem perda salarial e a taxação dos super-ricos. Por outro lado, o atual Congresso mantém o orçamento secreto e avança em medidas como o Projeto de Lei (PL) 2159/2021, o “PL da Devastação”, que visa flexibilizar as regras de licenciamento ambiental incentivando ainda mais a destruição ambiental em favor dos setores do agronegócio, da mineração e de energia.
O modelo de desenvolvimento predominante no Brasil tem a centralidade no apoio às mineradoras, ao agronegócio e aos projetos de energia em larga escala, com práticas de violência e destruição da Casa Comum. Para tanto, esses grupos econômicos apoiam-se na militarização da sociedade, com intervenção da polícia e das milícias para garantia da expansão e consolidação desse modelo predatório. Preocupa a ascendência e influência do Movimento Invasão Zero que pratica violência indiscriminada contra povos e comunidades e impede o direito de acesso à terra. Dinâmicas que agravam a crise climática e dificultam a construção dos caminhos do Bem Viver.
Destacamos que, apesar da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudança Climáticas de 2025, a COP30, a ser realizada em Belém do Pará, em novembro de 2025, ser uma oportunidade para construção de estratégias para o enfrentamento das questões climáticas, predomina a influência das grandes potências e grandes corporações, que favorecem acordos de falsa solução para a crise socioambiental. Propostas com as quais não compactuamos e em reação afirmamos nossos modos de vida em nossos territórios preservados como saída mais efetiva para a crise climática.
Diante desse cenário desafiador, somos provocados pela memória subversiva de tantos companheiros/as exemplares nesta luta, que recentemente partiram para a casa do Pai, como o ex-deputado Luiz Alberto, o agente histórico da CPT Edu Terrin, Frei Rutivalter, as lideranças das mulheres Nina Santos e Idalina Meira e inspirados no testemunho vivo de Dona Lindaura e dos jovens Luana e Danilo e das crianças indígenas Xacriabás e de tantos outros/as presentes nesta romaria com suas experiências diárias que animam e fortalecem a mística, a esperança e a luta. Com eles/as, nós, romeiros/as da 48ª Romaria da Terra e das Águas, reafirmamos nosso compromisso com a vida, com nossos territórios, com nossos rios e nossos povos e comunidades que ainda resistem aos projetos de morte, na construção de caminhos de uma verdadeira Ecologia Integral. A partir da interação entre as diversidades dos povos e comunidades, do campo, das águas e das florestas, e de forma participativa, construímos novos compromissos individuais e coletivos em favor da Casa Comum.
Com ludicidade e criatividade o plenarinho das Crianças assumiu os compromissos de: rios limpos; sem queimadas; sem poluição; sem desmatamento; não jogar lixo no meio ambiente; fazer reciclagem; um mundo com pessoas conscientes, com esperança, com amor, paz e felizes com muitas alegrias para cuidar do planeta. O plenarinho das Juventudes assumiu o compromisso de fazer produção agroecológica com os saberes ancestrais, implantar quintais produtivos e compartilhar experiências nas redes sociais das organizações populares.No de Terra e Território os compromissos foram de seguir defendendo e cuidando da terra, das águas e dos biomas, assim como denunciar toda criminalização de lideranças dos povos indígenas e comunidades tradicionais, defensores dos direitos humanos e da natureza, para o que construir uma rede de defesa e fortalecimento dos povos. No plenarinho São Francisco e outras Bacias, o compromisso assumido é o de mapear e cuidar das águas dos territórios, denunciando os responsáveis por sua destruição. Já no plenarinho Fé e Política, os compromissos assumidos foram os de partilhar saberes, esperanças, desafios, avanços e envolvimentos com a defesa da Casa Comum e pelos direitos socioambientais, como aprendemos com a Carta Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco. Vamos participar ativamente da política, fortalecendo todas as ações em defesa dos direitos humanos e da natureza, animar as lutas das pastorais e movimentos sociais, participar dos coletivos locais de construção do Plebiscito Popular pela redução da escala de trabalho 6X1 e pela taxação das grandes fortunas. Comprometemo-nos a manter erguida a bandeira da fé e política como elementos indissociáveis, pois “a fé sem obra é morta” (Carta de Tiago 2, 26).
Diante deste contexto adverso e de criminalização das lutas, destacando os casos emblemáticos envolvendo as prisões arbitrárias de Vanderlei Silva e Solange Moreira, lideranças do Fecho de Pasto “Brejo Verde, em Correntina, e do Cacique Suruí Pataxó, da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, no sul da Bahia, reivindicamos a imediata libertação dos nossos companheiros/a e denunciamos todas as iniciativas de criminalização da luta popular. E exigimos respeito e demarcação dos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais, fortalecimento das políticas públicas de convivência com os biomas, e uma democracia efetivamente popular, que favoreça a unidade e organização da luta do campo e da cidade pelo Bem Viver.
Iluminados e abençoados pelo Bom Jesus da Lapa, nós, romeiros e romeiras da Terra e das Águas, retornamos para nossas comunidades animados, articulados e motivados pela esperança que não nos confunde. Seguiremos fieis ao Evangelho do Cristo libertador, por uma vida plena de abundância, como nos propõe o Papa Leão XIV, “buscar juntos como ser uma igreja missionária, uma igreja que constrói ponte e dialoga”.
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