
Três anos em tratamento experimental, Jocy viu seus nódulos praticamente desaparecerem.
Arquivo Pessoal
A costureira Jocy Silva, de 41 anos, não sabia que entraria para uma pesquisa clínica quando recebeu a proposta da médica. Com câncer de mama com metástase no pulmão e a filha ainda em fase de amamentação, ela topou ser medicada com uma nova droga conjugada, que combina quimioterapia e terapia-alvo. O tratamento, segundo o médico que a acompanhava, “não seria pelo SUS, mas também não teria custo”.
🧫Pesquisa clínica é o estudo científico com pacientes que testa novos tratamentos ou combinações de terapias para doenças (veja mais abaixo).
Três anos depois, Jocy viu os nódulos praticamente desaparecerem e diz que o que a salvou foi justamente aquilo que antes ela rejeitaria, por medo e desinformação: um estudo clínico.
“Se a médica tivesse dito ‘pesquisa clínica’ no início, talvez eu recusasse, por ignorância. Achava que seria um rato de laboratório. Mas foi a melhor oportunidade da minha vida”, conta.
Assim como Jocy, a professora Francisca Iraci, de 52 anos, vive há mais de uma década sob acompanhamento de um protocolo experimental. Diagnosticada com câncer de mama em 2011, ela viu a doença retornar nos ossos dois anos depois. Foi aí que ouviu de seu médico que uma nova medicação, ainda não aprovada no Brasil, poderia mudar seu prognóstico. Ela aceitou.
“Na época, me deram um ano de vida. Já se passaram 14”, diz Francisca.
Francisca Iraci, de 52 anos, vive há mais de uma década sob acompanhamento de um protocolo experimental.
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“Quando o médico me ofereceu a pesquisa, meu marido foi contra a minha participação. Disse que eu seria ‘cobaia’. Hoje ele concorda que se eu não tivesse tido essa chance, não estaria aqui. Meu câncer está estável há 14 anos e, com o tratamento, vivo como gosto: dançando forró por horas, viajando e aproveitando a vida”, afirma Francisca.
Francisca foi uma das primeiras brasileiras a receber a terapia alvo combinada de trastuzumabe e pertuzumab. Dois anos depois de Francisca ter entrado na pesquisa, a droga foi aprovada no Brasil e só em 2019 foi incorporada ao SUS –até hoje disponibilizada de forma muito restrita.
“Quando ela chegou ao consultório com o início da metástase óssea, sentia muita dor e já havia perdido muito peso. Com o tratamento, controlamos o avanço dos tumores e os sintomas. Hoje, ela vive bem, dança, viaja –e isso há 14 anos”, diz o oncologista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC) que cuida de Francisca, Felipe Cruz.
Nos bastidores dos grandes centros de referência do país, os estudos clínicos seguem protocolos rigorosos, são fiscalizados por comitês independentes e representam a principal via de acesso a tratamentos de ponta — especialmente para quem não tem plano de saúde.
Como funciona uma pesquisa clínica
Uma pesquisa clínica é um estudo científico que avalia novas formas de tratar uma doença, seja por meio de um medicamento inédito, uma combinação de terapias já existentes ou tecnologias emergentes, como a imunoterapia ou a terapia celular no caso do câncer. Para chegar ao uso na prática médica, toda droga precisa, obrigatoriamente, passar por diferentes fases de pesquisa — um processo que pode durar até dez anos.
A jornada começa na chamada fase pré-clínica, feita em laboratório, com testes em células e animais. Quando os dados apontam segurança e alguma eficácia, os testes passam a ser feitos em seres humanos. É aí que se iniciam os estudos clínicos, divididos geralmente em quatro fases.
Na fase 1, os pesquisadores avaliam qual é a dose mais segura da substância, geralmente com um número pequeno de participantes.
Já na fase 2, o objetivo é medir a eficácia e monitorar os efeitos colaterais.
A fase 3 é a mais decisiva: envolve centenas ou até milhares de pacientes e compara o novo tratamento com o que já existe. É nesta fase que se estabelece, por exemplo, se a nova droga realmente é melhor que o tratamento padrão disponível no mercado.
Depois, mesmo com o remédio aprovado pelas agências reguladoras, ele segue sendo monitorado na fase 4, já com uso em larga escala.
“Todo tratamento contra câncer usado hoje foi, um dia, uma pesquisa clínica. A diferença é que agora os resultados já são conhecidos. Mas tudo começou com alguém que topou participar de um estudo”, explica Angelo Brito, oncologista e coordenador da Unidade de Pesquisa Clínica do A.C.Camargo Cancer Center.
Estudos são randomizados; o que é isso?
A maioria das pesquisas clínicas segue o modelo “randomizado e duplo-cego”. Isso significa que os participantes são sorteados para um dos braços do estudo: em um, recebem o tratamento padrão (o melhor disponível até aquele momento); no outro, recebem o mesmo tratamento padrão associado à nova droga em avaliação.
Nem os pacientes, nem os médicos sabem quem está em qual grupo — uma estratégia para evitar que as expectativas interfiram nos resultados.
“O estudo é ético porque ninguém recebe menos do que o melhor já aprovado. Quem participa vai, no mínimo, ser tratado com aquilo que está disponível como padrão ouro. Se cair no grupo experimental, poderá receber algo ainda melhor”, explica Luiz Fernando Lima Reis, diretor de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês.
Além disso, se durante o estudo forem observadas diferenças claras entre os grupos — por exemplo, uma melhora significativa em quem recebe a droga nova — o protocolo pode prever a migração dos demais pacientes para o tratamento mais eficaz.
Quem paga por tudo isso?
Ao contrário do que muitos pensam, o paciente não paga nada. Todos os custos — incluindo exames, medicamentos, consultas, deslocamentos e até hospedagem, quando necessário — são arcados pelo patrocinador da pesquisa, geralmente uma indústria farmacêutica ou organização internacional.
Também é comum o oferecimento de ajuda de custo para alimentação e transporte, especialmente nos casos de pacientes que moram longe dos centros de pesquisa.
“A legislação brasileira determina que não pode haver nenhum custo, direto ou indireto, para o participante. Todo o cuidado médico é bancado pelo patrocinador”, reforça Stephen Stefani, oncologista e membro da Americas Health Foundation.
Uma lei que mudou o jogo
Em 2023, o Congresso Nacional aprovou e o presidente Lula sancionou a nova Lei das Pesquisas Clínicas. A medida trouxe avanços importantes para o Brasil atrair mais estudos: criou prazos para a aprovação de protocolos, limitou a obrigação dos patrocinadores de fornecer medicamentos após o fim dos estudos (antes, isso era por tempo indefinido) e deu mais segurança jurídica aos centros de pesquisa.
“Foi um marco. O Brasil ainda representa menos de 5% dos estudos clínicos globais, o que é péssimo para um país com tanta diversidade genética e uma população gigantesca sem acesso a medicamentos de ponta. Essa lei ajuda a mudar esse cenário”, explica Luiz Fernando Lima Reis.
Como participar de um estudo clínico?
A porta de entrada quase sempre é o próprio oncologista. Médicos que trabalham em centros de referência já sabem quais estudos estão abertos e podem encaminhar pacientes. Mas também é possível buscar ativamente por plataformas oficiais, como o REBEC (Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos) e o ClinicalTrials.gov, que listam os estudos em andamento no Brasil e no mundo.
Há ainda ferramentas mais acessíveis, como a LetMeTrial e a Lifetime Pesquisa Clínica, que usam inteligência artificial para identificar o estudo compatível com o perfil do paciente e facilitar o agendamento da triagem inicial.
“O paciente não precisa esperar o médico oferecer. Ele pode buscar, questionar, perguntar se há algum protocolo em que ele se encaixa. Essa autonomia é essencial”, diz Juliana Mauri, gerente da Rede Vencer o Câncer.
Impacto para o SUS
A expansão dos estudos clínicos também traz benefícios para o sistema público de saúde. Ao incluir um paciente em um protocolo, o SUS deixa de arcar com o custo do tratamento e ainda amplia o acesso à inovação.
Muitos tratamentos fornecidos como braço-controle pela pesquisa sequer chegaram ao SUS. Stefani explica que o paciente do sistema público, ao participar de um estudo clínico, pode ter acesso a medicamentos e tecnologias avançadas que ele não acessaria pelo SUS.
“É uma forma de aliviar o sistema e entregar um cuidado de excelência, custeado por quem desenvolve a tecnologia. Ganham todos: o paciente, o SUS e a ciência”, afirma Luiz Fernando.
Além disso, diz o médico, hospitais que atuam com pesquisa clínica costumam ter melhores desfechos terapêuticos, mais segurança e rigor assistencial.
Nem sempre é cura — mas pode ser esperança
A morte da cantora Preta Gil, após participar de um estudo clínico nos Estados Unidos, trouxe o tema à tona, mas também gerou confusão. “O fato de o tratamento não ter sido suficiente não invalida o protocolo. Cada paciente responde de forma diferente, e a ciência se faz justamente assim: com observação, registro e aprendizado”, diz Stefani.
“A Preta Gil não morreu por ter participado da pesquisa. Ela morreu de um câncer agressivo que não respondeu ao tratamento. Mas o estudo era a melhor e talvez única alternativa para ela naquele momento”, explica Juliana Mauri.
Para Jocy, a participação salvou sua vida. Para Francisca, foi o que lhe deu mais 14 anos. Ambas continuam o tratamento com acompanhamento contínuo, exames frequentes e suporte multiprofissional.
“Hoje, conheço várias pessoas que vivem há mais de 20 anos com câncer. O tratamento me transformou, me deu qualidade de vida e me fez entender que o câncer não é mais uma sentença de morte”, diz Jocy.
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