‘Cemitério dos homens vivos’: a brutalidade na megaprisão de Bukele relatada por 8 venezuelanos deportados pelos EUA para El Salvador


Joén Suárez, Arturo Suárez, Wilken Flores e Andry Hernández na fileira de cima. Andy Perozo, Mervin Yamarte, Edwuar Hernández e Ringo Rincón aparecem logo abaixo (da esquerda para a direita)
Getty Images e AFP via BBC
O único pedido que Arturo Suárez fez aos guardas ao chegar ao Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot), em El Salvador, foi que permitissem a ele ficar com seus óculos.
Mas ele conta que eles foram quebrados durante uma surra. Ele então desmaiou, e dois guardas o carregaram até o bloco 8, a ala do Cecot que abrigou, entre março e julho de 2025, 252 migrantes venezuelanos deportados dos Estados Unidos pelo governo do presidente Donald Trump.
Os venezuelanos foram separados dos membros de gangues salvadorenhas para os quais foi projetada esta prisão de segurança máxima, inaugurada em 2023 pelo presidente Nayib Bukele como símbolo de sua política de combate às gangues.
Durante anos, as gangues aterrorizaram a população de El Salvador com assassinatos e extorsões, tornando o país um dos mais violentos do mundo.
A política linha-dura de Bukele reduziu drasticamente os homicídios, e serviu de exemplo para outros países, mas também recebeu inúmeras denúncias de violações de direitos humanos.
Governo Trump ignora ordem de juiz e deporta venezuelanos para El Salvador
Quando Suárez abriu os olhos, tudo ao seu redor estava embaçado. No entanto, ele se lembra de ter ouvido as palavras de Belarmino García, o diretor da prisão:
“O famoso Trem de Aragua… Bem-vindos ao inferno, bem-vindos ao cemitério dos homens vivos. Daqui vocês só saem mortos. Aqui vocês estão na qualidade de condenados.”
O Trem de Aragua surgiu na Venezuela em 2014 e expandiu suas operações para diversos países do continente americano. A Casa Branca o considera uma “organização terrorista estrangeira”, com “milhares de membros infiltrados ilegalmente nos EUA”.
Confuso e sem enxergar direito, Suárez não entendia o que estava acontecendo.
O cantor venezuelano conta que havia solicitado nos EUA o Status de Proteção Temporária (TPS, na sigla em inglês), um programa que protegeu da deportação quase 600 mil venezuelanos durante o mandato do ex-presidente Joe Biden.
Mas o governo Trump acabou com essa proteção para os venezuelanos em 5 de fevereiro (e posteriormente a retirou para outras seis nacionalidades que se beneficiavam do programa).
Em março, o governo de El Salvador divulgou imagens dos migrantes deportados dos EUA
Anadolu Agency via Getty Images, via BBC
Três dias depois, Suárez foi preso pelas autoridades migratórias na Carolina do Norte, enquanto gravava um videoclipe.
Edwuar Hernández, que morava em Dallas e trabalhava em uma fábrica de tortilhas quando foi detido, também se lembra claramente do discurso de boas-vindas do diretor do Cecot.
“Ele disse que nunca mais comeríamos frango nem carne. E que éramos do famoso Trem de Aragua. Gritamos que éramos inocentes, e ele disse: ‘Não sou ninguém para julgá-los; quem vai julgar vocês é Deus’.”
O governo Trump justificou a transferência dos migrantes para El Salvador com base em sua suposta filiação ao grupo criminoso venezuelano.
A deportação
Quando Suárez e Hernández embarcaram no voo para serem deportados dos EUA, pensavam que estavam indo para a Venezuela. Foi isso que haviam dito a eles, afirmam. No entanto, desembarcaram em El Salvador algemados pelas mãos e pelas pernas.
Hernández conta que, ao chegarem à capital salvadorenha, os migrantes foram expulsos do avião a pontapés e empurrões. De lá, foram levados para o Cecot.
Ao entrar na prisão, ele diz que foram obrigados a se ajoelhar diante de homens que rasparam suas cabeças. Em seguida, tiveram que se despir para colocar uma calça e suéter brancos e sandálias croc da mesma cor.
Eles ficaram no Cecot por cerca de quatro meses.
No dia 18 de julho, os 252 venezuelanos foram enviados de volta ao seu país, após um acordo entre os governos de El Salvador, Venezuela e EUA.
De suas casas, cercados por familiares e amigos, a BBC News Mundo, serviço de notícias da BBC em espanhol, conversou com oito deles para fazer uma reconstituição do dia a dia dentro da famosa megaprisão, um lugar do qual poucos saíram e cuja rotina é pouco conhecida devido ao sigilo que a cerca.
Edwuar Hernández (23 anos), Mervin Yamarte (29), Andy Perozo (30) e Ringo Rincón (39) compartilharam juntos suas experiências, reunidos no bairro Los Pescadores, na província de Zulia, no oeste da Venezuela.
Os quatro emigraram e chegaram juntos aos EUA, e foram detidos juntos no apartamento que dividiam no Texas.
Também conversamos com Andry Hernández (31), que mora no Estado de Táchira, perto da fronteira com a Colômbia; com Arturo Suárez (34) e Joén Suárez (23), em suas respectivas casas em Caracas; e com Wilken Flores (24) em Guatire, uma cidade próxima à capital venezuelana.
Alguns haviam entrado nos EUA legalmente, e outros de forma irregular, e os oito foram apontados como criminosos no país.
O governo americano reconheceu que muitos dos venezuelanos deportados não têm antecedentes criminais.
A BBC perguntou ao Departamento de Segurança Nacional (DHS, na sigla em inglês) que evidências existem de que eles pertencem ao Trem de Aragua, mas não recebeu resposta.
Tampouco obtivemos acesso a informações que permitissem verificar de forma independente seus antecedentes.
Um deles, Joén Suárez, foi acusado de dirigir sem carteira de motorista, seguro e com placas irregulares no Colorado em 2024, mas registros judiciais mostram que o processo foi posteriormente arquivado.
Eles negam ter qualquer vínculo com a gangue criminosa, e afirmam que não tiveram a oportunidade de responder às acusações.
Mervin Yamarte, Andy Perozo, Ringo Rincón e Edwuar Hernández conversaram com a BBC News Mundo no Estado de Zulia, na Venezuela
BBC
A chegada
Todos os migrantes com quem a BBC News Mundo conversou dizem que os abusos no Cecot começaram no primeiro dia.
“Ao chegar, quando tiraram toda minha roupa e fiquei nu, eles me bateram com uma tábua por baixo da bunda, me bateram nas costelas, não me deixaram nem colocar a roupa”, conta Mervin Yamarte, um trabalhador da construção civil na Venezuela que, assim como Edwuar Hernández, trabalhava em uma fábrica de tortilhas no Texas.
“‘Anda logo, seu bosta!’ (Merda), eles me diziam. Como posso vestir minhas roupas se estão me batendo?”
A BBC News Mundo enviou pedidos de comentários sobre as denúncias de abuso à Presidência, ao Ministério da Segurança de El Salvador e à direção do Cecot. Até a publicação desta reportagem, nenhuma das três entidades havia respondido.
No entanto, no passado, o presidente Bukele negou qualquer violação de direitos, tanto na megaprisão quanto nos demais presídios do país.
E o recente relatório anual de direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA afirma que em El Salvador “não há relatos confiáveis de abusos significativos”, uma mudança radical em relação ao que dizia o relatório anterior à chegada de Trump ao poder.
A prisão
“É um lugar extremamente frio e imenso, é uma cidade completa”, diz à BBC News Mundo Andry Hernández, maquiador que pediu asilo nos EUA assim que cruzou a fronteira com o México, mas foi imediatamente detido. Ele não passou um único dia sequer em liberdade.
Sua descrição da prisão coincide com uma investigação publicada pela BBC News Mundo em julho de 2023, logo após a abertura do Cecot.
A estrutura do Cecot, em El Salvador
BBC
Embora os migrantes venezuelanos não tenham interagido com os membros de gangues salvadorenhas, eles relatam que tiveram contato com outros presos comuns. “Eles nos davam comida, limpavam o bloco, recolhiam o lixo”.
Como estavam vestidos de amarelo, eram chamados de “minions”, como os personagens do filme de animação.
O governo de Bukele tem um programa chamado Zero Ócio, por meio do qual 48 mil presos comuns, que não são membros de gangues, são considerados “em fase confiável” e realizam trabalhos em troca de alguns benefícios, como redução de penas.
Em todos os blocos, existem celas solitárias para castigo que os migrantes do bloco 8 chamam de “a ilha”.
“São várias celas escuras para onde levam a pessoa para torturá-la. Eles dizem: ‘Cala a boca, merda; cala a boca, seu bosta; cala a boca, filho da puta’. Te fazem ajoelhar, pisam em você, dão tapas, socos na orelha, te chutam”, denuncia Joén Suárez, que era barbeiro na Venezuela, e trabalhou como pintor em Denver e entregador em Nova York.
Eles afirmam que há um buraco no teto, a única fonte de luz que entra na solitária.
As solitárias do Cecot
BBC
O Cecot abriga muitos dos membros de gangues que durante anos controlaram as ruas de El Salvador. Muitos foram detidos antes de março de 2022, quando foi declarado o atual Estado de exceção que, segundo organizações de direitos humanos, não garante o devido processo legal.
Essa denúncia de falta de garantias é consistente com a feita pelos migrantes venezuelanos que foram deportados pelos EUA e confinados na mesma prisão salvadorenha.
Para realizar as deportações sem esperar decisões administrativas ou judiciais, Trump recorreu à Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798, que concede ao presidente o poder de deter e expulsar cidadãos de países com os quais os EUA estão em guerra.
Mas em 15 de março, mesmo dia em que decolou o primeiro voo de deportação para El Salvador, um juiz ordenou a suspensão das transferências, determinando que a lei não poderia ser aplicada a essas expulsões.
Os oito estão convencidos de que foram presos por terem tatuagens que as autoridades americanas associam ao Trem de Aragua.
Andry Hernández, por exemplo, foi submetido a um sistema de pontuação pelo qual foi classificado como suspeito de pertencer à gangue devido a duas coroas tatuadas em seus punhos.
As tatuagens de Andry Hernández nos punhos
Documento judicial
A BBC News Mundo consultou a Casa Branca sobre o polêmico envio de venezuelanos para El Salvador e suas denúncias de abusos no Cecot.
“O governo de Trump agradece nossa colaboração com o presidente Bukele para ajudar a expulsar os piores imigrantes ilegais, violentos e criminosos das comunidades americanas”, respondeu a porta-voz Abigail Jackson por meio de um comunicado.
Dos oito que deram depoimento à BBC News Mundo, apenas dois migrantes tinham ordens de deportação para seu país de origem antes de serem enviados para El Salvador.
Outros entraram nos EUA após marcar uma consulta oficialmente ou desfrutavam de ou haviam solicitado mecanismos que os protegiam da deportação, como asilo ou Status de Proteção Temporária.
Os oito denunciam que acabaram atrás das grades do Cecot sem possibilidade de defesa legal.
As celas
Ringo Rincón, trabalhador da construção civil e pai de três filhos, conta que, antes de fechar a porta da cela que foi designada a ele na chegada, o guarda disse: “Vocês já sabem: Aqui não há advogados, não há telefonemas, não há juízes, aqui não há nada”.
Ele lembra que o guarda falou que tudo o que eles tinham era o que estavam vestindo, e o que havia dentro da cela. “‘Vocês não têm mais nada’, ele nos disse.”
Desde então, eles afirmam que ficaram sem contato com seus familiares e equipes de defesa jurídica.
“Ao entrar, há dois tanques de água, um à direita e outro à esquerda”, explica Andry Hernández, a partir de Capacho, uma cidade nos Andes venezuelanos.
“Em cada canto desses tanques havia dois canos de esgoto e, ao lado deles, dois vasos sanitários, um para urinar e outro para fazer as necessidades. Tínhamos um balde vermelho para nos lavarmos, usar nos sanitários e beber.”
Os detidos bebiam a água dos tanques e afirmam que nunca tinham privacidade, pois os vasos sanitários eram descobertos.
“O cheiro era horrível, era puro esgoto, porque são fossas sépticas. É muito fedido dentro da cela”, afirma Wilken Flores, que entrou nos EUA com um agendamento para consulta de acordo com o procedimento oficial, mas foi detido assim que entrou no país.
“Não havia ventilação, não entrava vento. O calor era sufocante, e as cinco luzes do teto ficavam acesas”, conta Arturo Suárez, que tentava se acostumar com a visão reduzida devido à perda de seus óculos.
Se uma cela tem capacidade para 80 pessoas, no bloco 8 havia entre 10 e 19 detentos por cela, concordam os entrevistados.
“Na minha cela, havia 19 corpos, 19 odores, 19 níveis de pH. Era difícil viver assim”, afirma Andry Hernández. “Mas com o tempo nosso olfato e nosso corpo se adaptaram”.
Nas alas dos membros de gangues, há mais de 100 detentos por cela, segundo constatou uma jornalista da BBC News Mundo que visitou a prisão em fevereiro de 2024, e mostraram os vídeos e fotografias publicados por outros meios de comunicação e pelo próprio governo salvadorenho.
Dormir sobre metal
Os oito homens afirmam que havia quatro fileiras de beliches em cada cela.
“Na maior parte do tempo, dormíamos em latão, como mesas de lata, sem lençóis, sem nada”.
“Na cama que ficava ao nosso lado, escrevíamos: ‘Família, saudade, amo vocês'”, relata Andry Hernández, que além de maquiador era ator de teatro na Venezuela.
“Escrevíamos palavras de incentivo que nos ajudavam a pegar no sono, entre aspas, porque na verdade ninguém dormia”.
Andy Perozo, que trabalhava como padeiro na Venezuela e em uma fábrica de tortilhas nos EUA, afirma que havia um guarda conhecido como o “líder do bloco” que fazia barulho à noite.
“Ele batia nas paredes ou nas portas para não conseguirmos dormir. Cada momento era uma tortura.”
Todos indicam que não saíam ao ar livre.
“Permanecíamos 24 horas trancados, sem nos aproximar das grades, na angústia de saber se iriam nos bater, se iriam gritar conosco, quando iríamos sair”, explica Andry Hernández.
“Víamos a claridade, mas não sentíamos o sol”, acrescenta Arturo Suárez.
Sem relógios
O dia começava às 4h da manhã. Ou pelo menos era o que eles calculavam, já que não havia relógios nas paredes, e os guardas se recusavam a dizer o dia e a hora. Quando diziam, os detentos não acreditavam neles.
“Primeiro gritavam: ‘Hora da contagem!’. Esse era o nosso despertador”, lembra Andry Hernández. “Os guardas iam a cada cela, anotavam em um papel, contavam quantos havia”.
Depois, eles tinham que tomar banho.
“Tínhamos que nos levantar e tomar banho. Se não fizéssemos isso, sofríamos represálias. A cela inteira tinha que tomar banho, e não havia mais banho durante o dia, mesmo que estivesse muito calor”, recorda Joén Suárez de sua casa em San Agustín, um bairro de Caracas.
Todos se despiam e tomavam banho juntos ao lado dos tanques, dentro da mesma cela onde passavam o resto do dia.
“Havia dois baldes para 19 pessoas: enquanto um se molhava, o outro se ensaboava, porque só nos davam 10 minutos de banho para todos”, conta Arturo Suárez.
Nos quatro meses em que esteve detido, Suárez afirma que recebeu pasta de dente em três ocasiões. “Quando havia visita (da Cruz Vermelha ou de políticos americanos), eles nos davam pasta de dente, a metade de um sabonete e as escovas, que eram cortadas”.
“Chegamos a escovar os dentes com sabão Ace”, afirma Wilken Flores, referindo-se ao detergente que davam a eles para lavar roupa.
Wilken Flores com a mãe na casa da família na Venezuela
BBC
Eles precisavam de autorização para fazer qualquer movimento. Do contrário, corriam o risco de serem punidos se os guardas percebessem.
“Para ir ao banheiro, tínhamos que pedir permissão a eles”, explica Flores. “Ou eles nos batiam”.
Embora quisessem “respirar ar fresco”, era proibido se aproximar das grades da cela. “Se nos descuidássemos e colocássemos as mãos na grade, eles nos batiam, machucavam nossas mãos”, lembra Flores.
Tomar banho fora do horário exigia uma estratégia. “Tínhamos que pedir aos (presos) da cela ao lado para vigiarem. Todos nós nos ajudávamos: você olha para lá, o outro para cá e assim, cada um vigiava um certo limite.”
Dados de tortilla
Os detidos supõem que por volta das 7h serviam o café da manhã: um prato de arroz, feijão preto e tortilhas, às vezes com creme ou algum biscoito.
Ao meio-dia, serviam o almoço: macarrão, arroz e tortilha. Por volta das 17h, era hora do jantar: arroz, feijão e tortilha.
Eles contam que não tinham talheres. Tinham que comer com as mãos.
“Às vezes, o feijão do café da manhã cheirava mal. Como não estávamos acostumados a comer tortilhas, jogávamos tudo no ralo nos primeiros dias.”
Mas quando os guardas descobriram o que estava acontecendo, ameaçaram puni-los. “Eles estavam nos supervisionando. Quando os guardas tinham gás lacrimogêneo ou spray de pimenta, diziam que, se não comêssemos, iriam jogar na gente”, conta Andy Perozo.
Com o tempo, sua engenhosidade os levou a encontrar outros usos para a comida.
Enquanto alguns se exercitavam — mesmo sem poder tomar banho depois —, outros jogavam dominó ou uma espécie de ludo, jogo de tabuleiro com peças e dados feito de massa de tortilha.
“Apertávamos a massa, fazíamos um quadrado no formato dos dados, subíamos na última cama e passávamos a massa na poeira, o que dava uma textura firme e formava os dados”, explica Edwuar Hernández, apaixonado por futebol.
“Depois, fazíamos os pontinhos, e marcávamos o chão ou o metal (da cama) com sabão para criar o tabuleiro, e então jogávamos.”
Às vezes, os guardas tiravam os dados deles. Ou eram obrigados a falar em um volume muito baixo ou a fazer “silêncio total”. Nesses casos, conversar com outros presos poderia resultar em punições adicionais.
“Se falássemos novamente, nos diziam: ‘Todos para o fundo, prontos para a revista'”, conta Ringo Rincón, que ansiava por voltar à Venezuela para ficar com os três filhos, especialmente o mais novo, que nasceu dias antes de sua partida para os EUA.
“Eles nos deixavam lá por duas, três, quatro horas.”
“O abuso psicológico era tão forte que há um detalhe surpreendente: naquele lugar, não era possível falar como estamos falando aqui”, afirma Mervin Yamarte, cercado por seus companheiros no Estado de Zulia.
“Eles queriam que falássemos por sinais, porque as gangues faziam isso, as gangues se comunicam por sinais.”
Greve de sangue
Todos reconhecem que, se se sentissem mal, podiam solicitar uma consulta no serviço médico, mas esclarecem que não recebiam medicamentos, com exceção de nove comprimidos (seis vermelhos e três brancos) que recebiam todas as segundas-feiras para prevenir a tuberculose, segundo diziam as autoridades prisionais.
“Tínhamos que tomar na frente deles (dos guardas)”, explica Edwuar Hernández. “Esses comprimidos faziam você urinar vermelho por uns quatro dias e com um cheiro forte”.
Hernández e Andy Perozo, amigos do bairro Los Pescadores, em Maracaibo, contam que durante um tempo eles eram espancados todos os dias. Quando os tiravam da cela para maltratá-los, diziam que iam ao serviço médico, eles denunciam.
“Colocavam a enfermeira em um quartinho, e a gente em outro”, diz Hernández. “Depois que nos espancavam, chamavam ela, e ela entrava e nos atendia.”
Às vezes, as agressões que sofriam provocavam reações de protesto individuais ou coletivas.
Joén Suárez denuncia que, em uma ocasião, os guardas tiraram os detentos de suas celas, os obrigaram a se ajoelhar e os borrifaram com spray de pimenta.
“Um dos nossos companheiros aparentemente sofria de asma. Ele desmaiou, e bateu a cabeça com força”, diz ele. “Três companheiros o levaram para a área médica, e então nos levantamos contra eles”.
Suárez afirma que eles jogaram pedaços de sabão e água nos guardas, que responderam com agressões. “Diziam que não éramos ninguém.”
Os detentos decidiram fazer uma greve de fome e uma greve de sangue.
“Tínhamos um lençol branco. Os companheiros se cortavam e, com o próprio sangue, escreviam: ‘O sangue de Cristo tem poder, somos imigrantes, não somos terroristas, socorro, SOS, queremos um advogado'”.
Wilken Flores conta que foi um dos detentos que cortou as pernas e os braços com a borda afiada da estrutura de metal da cama.
“Fiz cerca de oito cortes, e havia três feridas em que cabia um dedo. Já fecharam, mas ficaram em carne viva.”
“Queríamos um tratamento melhor”, diz Flores, explicando por que decidiu se cortar. “Queríamos médicos, queríamos comer bem, tomar banho, fazer nossas necessidades em paz, queríamos um banheiro, queríamos xampu.”
Joén Suárez lembra que, em uma certa ocasião, os presos quebraram os canos da sua cela, amarraram os lençóis neles, e os passaram pelas grades como uma bandeira.
“Os oficiais chegaram a ver a mensagem”, afirma.
‘Para a ilha!’
Esse tipo de rebelião acarretava punição.
Arturo Suárez afirma que esteve mais de dez vezes na “ilha” do bloco 8, a maioria delas por quebrar o silêncio e cantar.
“Encontrei no canto uma distração para mim e meus companheiros. Lá, eles apertavam as algemas, e batiam na gente com as mãos. Quando as agressões eram em massa, nos batiam com cassetetes.”
“Tínhamos que fazer silêncio total. Até por respirar eles mandavam você para a ilha”.
Joén Suárez segura a filha no colo na casa da família nos arredores de Caracas
BBC
Apesar da intimidação, Suárez compôs sua primeira canção dentro do Cecot:
Tres paredes y una reja,
me roban la libertad.
La mentira de unos hombres,
ocultando la verdad.
Dicen que soy un peligro
para esta sociedad.
No he cometido delito,
solamente emigrar.
Em tradução livre, seria:
Três paredes e uma grade,
roubam minha liberdade.
A mentira de alguns homens,
ocultando a verdade.
Dizem que sou um perigo
para esta sociedade.
Não cometi nenhum crime,
apenas emigrar.
O cantor afirma que, após as agressões, eles eram levados ao serviço médico. “Vendo a surra que nos deram, o médico tinha a audácia ou o sarcasmo de perguntar: ‘O que está doendo?'”.
Ele relata que, em uma das muitas vezes em que saiu da “ilha”, não conseguia sentar porque sentia dor nas costelas e nos rins. “Duas vezes cuspi sangue. A minha cabeça parecia um saco de pancada de boxe.”
Apesar de tudo, ele conseguiu compor uma segunda canção:
Desde la celda 31,
Papá Dios me habló,
Dijo: “Hijo, ten paciencia,
pronto viene tu bendición.
Solo quiero una cosa,
nunca te olvides de mí,
porque ya falta muy poco,
para que salgas de aquí”.
Em tradução livre, seria:
Da cela 31,
Papai do céu falou comigo,
Disse: “Filho, tenha paciência,
em breve virá sua bênção.
Só quero uma coisa,
nunca se esqueça de mim,
porque falta muito pouco,
para você sair daqui”.
Durante a conversa em Caracas, Suárez revela que um companheiro foi abusado sexualmente.
Esse companheiro é Andry Hernández.
O medo
Como os guardas estavam sempre com o rosto coberto, e a “ilha” era um espaço totalmente escuro, Hernández não sabe quem são os quatro guardas envolvidos na agressão que ele denuncia ter sofrido dentro da cela para castigo.
“Tenho muito orgulho de pertencer à comunidade (LGBTQ), mas o preço de tornar isso público naquela prisão foi ser abusado sexualmente pela própria autoridade.”
Ele afirma que não se atreveu a denunciar o que aconteceu à direção do Cecot.
“Tive muito medo de que algo muito pior pudesse acontecer comigo e, por isso, todos nós tomamos a decisão de permanecer em silêncio.”
“Agradeço a Deus porque isso não se repetiu e, graças aos meus companheiros, consegui superar isso”.
Além da violência física, Hernández denuncia ter sido assediado por ser homossexual.
“O que se repetia diariamente, além dos golpes, eram as obscenidades, ver como eles mordiam os lábios e me diziam: ‘Olha, casa com um salvadorenho para conseguir a documentação’; ‘olha, ele vai te engravidar’; ‘olha, toma anticoncepcional para não engravidar’.”
As visitas
Todos os entrevistados afirmam que as conveniências que obtinham quando recebiam visitas duravam apenas o tempo da visita.
Vários afirmam que chegaram a servir frango e carne ou que receberam lençóis e colchões quando políticos americanos ou funcionários da Cruz Vermelha visitaram a prisão.
“Sentimos o sol em nossos corpos apenas duas vezes, nas duas vezes em que a Cruz Vermelha esteve lá”, diz Arturo Suárez.
“Se alguém vinha, eles nos levavam para jogar futebol ou para o culto apenas para tirar a foto”, conta Andy Perozo. “Paravam de nos agredir, nos tratavam bem, nos davam comida e tiravam fotos apenas naquele momento para fazer a encenação.”
Mas eles afirmam que, assim que as autoridades da prisão tiravam as fotos, e os visitantes iam embora, eles retiravam a comida e os utensílios de uso pessoal.
Os migrantes do bairro de Los Pescadores, em Maracaibo, agradecem especialmente a visita dos funcionários da Cruz Vermelha.
“Esse foi o primeiro apoio que sentimos naquele lugar”, afirma Ringo Rincón. “Por meio deles, conseguimos deixar uma mensagem, embora conversássemos com eles e sempre houvesse um guarda ao lado.”
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) confirmou à BBC News Mundo por e-mail que visitou “todas as pessoas venezuelanas” em duas ocasiões.
“Conseguimos entrar em contato com a maioria das famílias para que soubessem do paradeiro deles”, afirmou o CICR. Mas esclareceu que a organização “não divulga publicamente informações sobre o estado ou as condições das pessoas detidas no momento da visita”.
“Quaisquer preocupações, observações ou recomendações decorrentes de nossas visitas foram transmitidas às autoridades responsáveis pela detenção”, acrescentou.
Outra visitante foi a secretária de Segurança Nacional dos EUA, Kristi Noem, que visitou o Cecot em 26 de março, acompanhada do ministro da Justiça e Segurança Pública de El Salvador, Gustavo Villatoro.
O departamento de Noem coordena o Serviço de Imigração e Controle Alfandegário dos EUA (ICE, na sigla em inglês), que realiza batidas para detenção de migrantes e opera voos de deportação.
Todos os migrantes que estiveram no Cecot foram detidos, processados e deportados dos EUA pelo ICE.
Arturo Suárez afirma que Noem não conseguiu gravar um vídeo com os migrantes ao fundo porque todos abriram as palmas das mãos e esconderam os polegares sob os dedos, um gesto que sinaliza pedido de socorro.
“Não a deixamos fazer a propaganda, porque começamos a pedir socorro por meio das câmeras e a gritar: ‘Liberdade’. É por isso que todos que saem atrás dela são de uma gangue, não venezuelanos.”
Secretária de Segurança de Trump visita megaprisão de Bukele em El Salvador
Em um vídeo gravado no Cecot e divulgado pelo Departamento de Segurança Nacional, Noem agradece ao governo de Bukele por manter os “terroristas” nessa prisão. Atrás dela, estão prisioneiros com tatuagens no rosto e no pescoço que são típicas de membros de gangues salvadorenhas, e não de migrantes deportados.
Na mensagem, a secretária afirma: “Se você vier ao nosso país ilegalmente, esta é uma das consequências que poderá enfrentar. Antes de mais nada, não venha ao nosso país ilegalmente. Você será deportado e processado.”
Em relação à declaração de Arturo Suárez sobre o vídeo de Noem, a subsecretária de Assuntos Públicos do DHS, Tricia McLaughlin, disse à BBC News Mundo por e-mail:
“O DHS deportou quase 300 terroristas do Trem de Aragua e da MS-13 para o Centro de Confinamento de Terroristas (Cecot) em El Salvador, onde eles não representam mais uma ameaça ao povo americano.”
“O vídeo da secretária Noem enviou uma mensagem clara aos imigrantes ilegais criminosos: se não forem embora, os perseguiremos, prenderemos, e poderão acabar nesta prisão salvadorenha”, destacou McLaughlin.
O DHS encaminhou a BBC News Mundo ao governo de El Salvador para que respondesse às perguntas sobre “as condições e o tratamento no Cecot”, uma vez que os migrantes “não são cidadãos americanos nem estavam sob sua jurisdição”.
‘Ainda estamos no Cecot’
Os oito entrevistados para esta reportagem dizem que não acreditavam que seriam enviados de volta à Venezuela até que, no dia 18 de julho, embarcaram no ônibus que os levou até o avião, e ouviram o sotaque venezuelano de autoridades do governo do presidente Nicolás Maduro.
“Foi uma coisa impressionante, todos nós chorávamos, nos olhávamos, nos abraçávamos no ônibus”, lembra Wilken Flores. “Uma alegria inexplicável.”
Assim que Arturo Suárez desembarcou na Venezuela, seus parentes compraram óculos novos para ele. “Fiquei quatro meses sem enxergar direito; não conseguia ler.”
Andry Hernández não só se reencontrou com a família, mas também com todos os vizinhos da cidade de Capacho que se mobilizaram para denunciar sua detenção nos EUA e exigir sua libertação.
Enquanto restabelecem a convivência com seus parentes, os venezuelanos que estiveram no Cecot afirmam que não têm planos de voltar a emigrar. Agora, eles só querem aproveitar a companhia da família.
A partir de agora, Arturo Suárez e Andry Hernández têm um projeto em comum: vão fazer um documentário para recriar o que vivenciaram em El Salvador.
Hernández também planeja abrir uma fundação para ajudar pessoas em situação de rua ou que precisem de algum tipo de assistência médica.
Edwuar Hernández foi recebido pela família ao retornar à Venezuela
AFP via Getty Imagens, via BBC
É a sua maneira de superar as sequelas do trauma.
“Quando ouço chaves, fico em alerta. Será que vêm atrás de mim? Será que vão abrir a cela? Será que vão me punir?”, conta Hernández.
“Fisicamente estamos livres, mas mentalmente ainda estamos no Cecot. Nossas cabeças ainda estão dentro daquelas celas”.
* Edição: Daniel García Marco, Tamara Gil e Carolina Robino. Gráficos: Caroline Souza, Daniel Arce López e Carlos Serrano, da Equipe de Jornalismo Visual
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