O Vale do São Francisco é uma das regiões mais ricas do país quando se trata de produção agrícola. Reconhecida nacional e internacionalmente por sua fruticultura irrigada e vitivinicultura — produção de uvas e vinhos —, a área movimenta bilhões de reais por ano. Segundo dados oficiais, os projetos de irrigação mantidos pela Codevasf alcançaram um Valor Bruto de Produção (VBP) de R$ 8,15 bilhões em 2024, um aumento de 43% em relação a 2023. São mais de 125 mil hectares cultivados, com uma produção de 4,42 milhões de toneladas de itens agrícolas, especialmente frutas como manga e uva.
A região responde por 90% da manga e 98% da uva exportadas pelo Brasil, ostenta o título de “oásis no Nordeste” e é tratada como referência mundial em fruticultura irrigada pelas águas canalizadas do São Francisco.
Mas, dentro do mesmo território que gera bilhões para o agronegócio, assentamentos da reforma agrária enfrentam dificuldades para produzir: muitas vezes sem água suficiente, sem regularização fundiária completa, sem crédito agrícola e sem canais diretos de comercialização.
Segundo Estevan Muñoz, coordenador do projeto Estudos Estratégicos para as Cadeias de Valor da Reforma Agrária, a produção dos assentamentos ainda é “invisível” em meio à pujança do agronegócio local. Um dos objetivos do estudo é justamente iluminar esses contrastes e evidenciar os desafios enfrentados pelas famílias assentadas: falta de infraestrutura, problemas com irrigação, burocracias no acesso a políticas públicas e a ausência de dados estruturados sobre a produção nos assentamentos.
O projeto é fruto de uma parceria do Laboratório de Educação do Campo e Estudos da Reforma Agrária (Lecera), que faz parte da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Dependência de atravessadores: preços desiguais e invisibilidade
A dependência quase total de atravessadores para escoar a produção é um dos maiores entraves enfrentados pelas famílias agricultoras. Sem acesso a canais diretos de comercialização, sem caminhões ou articulação com mercados institucionais, os agricultores são obrigados a vender suas frutas a intermediários que ditam os preços e impõem as regras do jogo.
Segundo o estudo, a distorção de valor é profunda: entre 92% e 93% do que é produzido é comercializado por atravessadores. Na prática, assentados recebem migalhas pelo que produzem, enquanto toda a margem de lucro fica fora dos seus territórios.
“A forma de escoamento até hoje são os atravessadores, que entram no assentamento, levam carradas e carradas de fruta, de produção, e passa ali a preço que a gente sabe que não é o preço justo”, relata Naiara Santos, do assentamento Vale da Conquista, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Sobradinho (BA).
A ausência de cooperativas organizadas, de estrutura de transporte e de políticas públicas de apoio à comercialização agrava esse cenário. “A gente não tem articulação, não tem caminhão, não tem condições de ir pra fora”, completa ela.
No Assentamento Safra, em Santa Maria da Boa Vista (PE), Robson Silva presencia essa realidade de forma concreta. Ele exemplifica: uma caixa de manga vendida pelo equivalente a R$ 2 o quilo chega a custar R$ 12,57 o quilo no supermercado — uma diferença superior a 500%, mesmo com uma manga de “qualidade inferior” àquela que sai da roça. “Aqui, se for feia, a gente dá pro porco. Lá, no mercado, tão vendendo a R$ 12 o quilo”, conta Robson.
Supermercados e atravessadores lucram enquanto, sem organização, agricultores vendem pelo preço que dá. “Tem atravessador que só mexe na caixa se ganhar R$ 10 por unidade. Eles pegam 200, 300, 500 caixas por dia”, afirma. Enquanto isso, o agricultor familiar não consegue ter sequer uma bicicleta com o que ganha em um ano. “Se comprar uma bicicleta, levanta a mão pro céu. O atravessador troca de carro todo ano”, resume Robson.
Naiara confirma essa percepção: os próprios produtores sabem que estão sendo explorados, mas se veem sem alternativas. “A gente vê a nossa produção no mercado com valor exorbitante, e a gente sabe que a gente vendeu por muito menos”, diz.
Além disso, há o desperdício. Como os atravessadores compram apenas as frutas mais vistosas, grande parte da colheita acaba sendo perdida ou jogada fora. “Eles selecionam. O que é de segunda ou terceira categoria, eles não levam. Fica na roça, apodrece”, conta Robson.
E mesmo quando o produto vai para o mercado, ele chega sem identidade: “Os agricultores não se reconhecem na embalagem. Vem um caminhão, embalam com caixa de papelão com o nome de uma fazenda qualquer. A fruta deles sai com outro nome”.

Água do Velho Chico não é para todos
Em uma das regiões mais conhecidas do Brasil pela agricultura irrigada, o acesso à água ainda é um privilégio restrito. Apesar da abundância hídrica no Vale do São Francisco, muitos assentamentos da reforma agrária enfrentam um cenário crítico: sistemas precários de abastecimento, infraestrutura insuficiente e altos custos operacionais.
A situação atual é resultado de um processo histórico desigual. As grandes obras realizadas no Rio São Francisco, como barragens e canais de irrigação, priorizaram grandes empreendimentos e acabaram impactando negativamente agricultores familiares. A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão federal responsável pelo desenvolvimento da região, facilitou historicamente o acesso à água para empresas e projetos privados — enquanto os assentamentos populares ficaram com “pouquíssima atenção”, como define Estevan Muñoz.
“A produção dos assentamentos é invisibilizada, a gente não consegue perceber, não é palpável. Porque o que é divulgado é a agricultura do agronegócio”, critica Naiara, formada em Direito pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) — uma política pública voltada à educação de filhos e filhas de assentados — e hoje atua na militância institucional e na articulação com o poder público.
Luta invisível no vale das frutas
A trajetória de Naiara Santos, militante do MST desde os 15 anos, é um espelho dos dilemas e da resistência que marcam a agricultura familiar no semiárido irrigado do Brasil. “Meu pai era humilhado na fazenda onde trabalhava com manga. Chorava ao chegar em casa”, lembra. Ela encorajou a família a deixar a fazenda e ocupar uma área improdutiva. A ocupação aconteceu em abril de 2007, no Projeto Salitre, em Juazeiro (BA), onde centenas de famílias resistiram até que, em 2008, foi firmado um acordo para que fossem transferidas para Sobradinho.
Assim nasceu o assentamento Vale da Conquista, que hoje reúne as 153 famílias previstas, mas apenas 103 delas foram formalmente reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Naiara ainda é considerada “pré-assentada”. A falta de regularização fundiária impede o acesso a políticas públicas essenciais, como crédito agrícola, assistência técnica e programas de compra de alimentos. Seus pais, já assentados oficialmente, cultivam no lote produtivo do quintal, mas não têm acesso pleno à infraestrutura de água prometida na criação do assentamento.
A região deveria ter sido beneficiada com uma mini-adutora para irrigar 80 hectares destinados à produção coletiva. Mas, segundo Naiara, o que chegou não dá conta nem do básico.
“Hoje, só 5% das famílias conseguem produzir, e mesmo assim, em lotes coletivos”, relata. A maioria dos moradores não tem como irrigar seus quintais ou roçados individuais. O fornecimento de água é racionado: cada agrovila recebe água por apenas dois ou três dias, com limite de duas horas por agricultor. “A demanda atual exigiria uma estrutura hídrica três, quatro vezes maior do que a que temos hoje”, afirma.
O assentamento está às margens da barragem de Sobradinho, uma das maiores do país, mas falta água até para irrigar o básico. “É uma das maiores barragens do Brasil. E a gente não consegue produzir. Isso mostra a falta de política pública concreta para a reforma agrária”, denuncia Naiara.
“Já vi agricultor chorar, literalmente, por não ter como tirar a safra por conta da falta d’água”, conta ela.
O Vale da Conquista é exemplo das contradições do semiárido irrigado: uma área com grande potencial, mas que sofre com a falta de água, a falta de regularização fundiária e a ausência de políticas que fortaleçam a produção da agricultura familiar. O “sonho mais difícil”, como ela define, foi conquistar a terra. Agora, o novo sonho é transformá-la num espaço estruturado, produtivo e digno.
Organizar a produção e gerar valor
Mesmo diante de tantos desafios estruturais, a organização coletiva aparece como uma das maiores ferramentas de transformação para os assentamentos da reforma agrária. No entanto, a formalização de cooperativas e o acesso a projetos estruturantes esbarram na burocracia, desinformação e falta de apoio institucional. Sem documentos, sem políticas públicas; sem políticas públicas, sem infraestrutura produtiva.
No lado pernambucano do São Chico, as famílias do Assentamento Safra buscam romper com essa lógica. Uma cooperativa foi fundada em 2015 e legalizada em março de 2024. Inicialmente, o objetivo é aproveitar a parte da produção que seria perdida, com a instalação de uma agroindústria para processamento de polpas e outros derivados. “A cooperativa vai ser o coração da nossa agroindústria. Mas até ela sair do papel foi uma novela. Falta apoio técnico, falta assessoria jurídica, falta quase tudo”, diz Robson.
“No meio do caminho vimos que poderíamos também criar um packing house para selecionar, embalar e exportar diretamente, sem atravessador”, explica.
No assentamento, cada família dispõe de um lote irrigado de até 5 hectares, abastecido por uma adutora construída com recursos federais e do governo estadual. O sistema permitiu aos agricultores avançar em suas produções, diversificar culturas e planejar a instalação de uma agroindústria.
Mas nem tudo são facilidades. “O custo de bombeamento e da energia elétrica é muito alto. A bomba puxa do canal para a caixa, e da caixa vai para os lotes. Isso exige energia o tempo inteiro”, explica Robson. A ideia de implantar energia solar foi discutida pela comunidade, mas o investimento ainda é inviável. “Fizemos orçamento com uma empresa da Bahia, mas era coisa de R$ 90 mil por família. Impossível pra nós”, relata.
Por conta disso, muitos produtores preferem plantar em pequenas áreas mais próximas do rio, onde o custo com energia é menor. “A gente vai adaptando, mas sabe que não é o ideal. O sonho é conseguir usar todo o lote, com irrigação regular, sem medo de faltar energia ou quebrar a bomba”, completa Robson.
No Vale da Conquista, do lado baiano do São Francisco, a realidade é outra. “Infelizmente, a gente não tem ainda essa cooperativa, não tem nenhuma forma de cooperação com relação mesmo à produção”, lamenta Naiara.
O projeto Estudos Estratégicos para as Cadeias de Valor da Reforma Agrária busca justamente romper esse ciclo. A proposta é entregar projetos técnicos executivos de agroindústrias e packing houses que possam ser financiados por instituições como o BNDES, Banco do Brasil e secretarias estaduais.
“A infraestrutura é essencial, mas não é suficiente. Se você entrega uma agroindústria para uma comunidade sem cooperativa consolidada e sem formação para gestão, vira um elefante branco. A chave é consolidar as cooperativas e capacitar as pessoas que vão tocá-las”, explica Estevan Muñoz, coordenador do projeto.
Segundo o professor, essas estruturas também poderão alimentar redes próprias de varejo, como os Armazéns do Campo, ligados ao MST. “Os armazéns são uma potência muito grande para mostrar que a reforma agrária pode alimentar o Brasil com qualidade e preços justos”, afirma.
De acordo com Robson, a ideia inclui implantar um Armazém do Campo no mesmo espaço da packing house na margem do entroncamento da BR 428 com a PE 574, na área do Assentamento Nossa Senhora da Conceição, aproveitando o fluxo intenso de veículos e turistas.
“A gente quer um ponto de venda direto, com produto fresco e preço mais acessível. Não precisa passar por supermercado, que só quer pagar o mínimo para o produtor e ainda vende produtos de qualidade duvidosa”, defende.
Agrotóxicos: o peso de uma cultura enraizada
A produção de frutas nos assentamentos da reforma agrária no Vale do São Francisco convive diariamente com um dilema: como romper com a lógica do modelo convencional, fortemente dependente de agrotóxicos, e avançar rumo à agroecologia? A transição para práticas sustentáveis enfrenta barreiras culturais, técnicas e estruturais, agravadas pela proximidade do agronegócio, que dita o ritmo e os padrões da produção regional.
“A gente já vem de uma construção de que o produto só vai dar certo, se tiver o agrotóxico. Se não for, não vai”, resume Naiara. Apesar de reconhecer os impactos à saúde e ao meio ambiente, muitos agricultores ainda veem o uso de veneno como uma “garantia” de produção.
Naiara conta que nos quintais produtivos do Vale da Conquista, voltados para o consumo das famílias, já existem práticas agroecológicas consolidadas. No entanto, na fruticultura de maior escala, como a manga, ainda predomina o uso de produtos químicos.
“A gente tem dialogado com as famílias para, por exemplo, separar 50 pés de manga e fazer a experiência agroecológica. Mas é difícil convencer. Já tem tanta dificuldade com água, com comercialização… dá medo arriscar mais.”
Estevan reforça esse diagnóstico: “A maior parte das produções nos assentamentos ainda segue o pacote da chamada revolução verde. É um modelo vulnerável, dependente de insumos externos, e que gera custos elevados e impactos graves.”
Além da dificuldade de mudança interna, os assentamentos precisam lidar com a contaminação vinda de fora. Muitas áreas são vizinhas de grandes empreendimentos do agronegócio que usam aviões e drones para pulverizar veneno sobre suas lavouras.
“A gente tá aos arredores do agronegócio. Tem a cana, a manga, a uva… Eles jogam veneno com drone, e a gente sente o cheiro aqui. Já teve peixe morrendo no rio, caso de câncer crescendo, tudo isso por causa do veneno”, denuncia Naiara.
Essa proximidade também alimenta a ideia de que, se os grandes produtores usam determinado produto, ele deve funcionar. “Às vezes o técnico da empresa é parente do assentado. Aí o mesmo produto que ele aplica lá, ele recomenda aqui. É difícil competir com isso”, lamenta.
Agroecologia: as sementes de mudança
Apesar das dificuldades, existem sementes de mudança. Nos quintais, os exemplos agroecológicos ganham força e servem como ponto de partida. No assentamento Safra, experiências de cultivo sem agrotóxicos já foram testadas com sucesso, segundo Robson Silva, mas ainda com produção modesta.
Para Naiara Santos, a transformação só virá com formação técnica e política. “As pessoas entendem. Muitas dizem que querem produzir agroecologicamente no futuro. Mas falta capacitação. Falta saber como fazer. E falta segurança pra tentar.”
A proposta do projeto do Lecera em parceria com a Univasf inclui ações formativas voltadas justamente à transição agroecológica, ao lado da infraestrutura produtiva. “Sem formação, não há mudança possível. Precisamos de assistência técnica contínua, acessível e com visão agroecológica”, conclui Estevan Muñoz.
“O sonho mais difícil era a gente sonhar em um dia ter a terra para produzir. E hoje a gente já tem”, afirma Naiara . O que falta agora, segundo ela, é o apoio necessário para fazer com que essa produção deixe de ser invisível.
“Tirar esses assentamentos da invisibilidade é o primeiro passo. O segundo é estruturar um caminho viável e contínuo de apoio — da produção à comercialização”, resume.
Naiara sonha com um espaço que valorize os produtos da agricultura familiar, cultivados por famílias que lutaram por terra para produzir e que hoje, mesmo com dificuldades, agarram com as mãos aquilo que antes parecia apenas um sonho vago. “Hoje é possível”, diz.
Segundo ela, o sonho mais difícil, conquistar a terra para produzir, já foi realizado. O próximo passo é avançar até obter a valorização justa da produção de quem “todas as manhãs acorda sonhando e pensando em dias melhores, através do seu trabalho, através da terra”.
Para Robson Silva, o sonho é real e palpável: “Queremos deixar de vender a manga por R$ 2 e ver ela a R$ 12 no mercado. Queremos vender com nosso nome, nossa marca. Queremos viver da nossa produção com dignidade”.
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