O acordo nuclear entre Irã e Estados Unidos parece ter ficado mais distante após o duro discurso do aiatolá Seyyed Ali Khamenei, líder supremo iraniano. Para uma multidão de dezenas de milhares de pessoas, reunidas para a celebração do 36º aniversário da morte do aiatolá Ruholla Musavi Khomeini, patrono da revolução islâmica no país, Khamenei rechaçou as propostas apresentadas pelos Estados Unidos, que exigem que o Irã abandone o enriquecimento de urânio, considerado peça chave na indústria nuclear, um dos passos do país persa para fortalecer a sua independência, termo muito frisado pelo líder.
A resposta de Khamenei foi direta: “Eles não podem fazer droga nenhuma a respeito”, declarou, inflamando a multidão que lotava o Mausoléu de Ruhollah Khomeini, que abriga os restos mortais do religioso, de sua esposa Khadjeh Saqafi e de seu segundo filho, Ahmad, onde seria realizada a cerimônia.
“A proposta (sobre o programa nuclear iraniano) apresentada pelos americanos é 100% contrária ao lema ‘nós podemos’”, declarou o aiatolá Khamenei, em referência aos pilares da Revolução Islâmica de 1979 sobre a independência do país.
Khamenei afirmou em um discurso durante um evento para recordar o 36º aniversário da morte do fundador da República Islâmica, o aiatolá Ruhollah Khomeini, que a independência do país implica “não esperar pela luz verde” dos Estados Unidos.
“Por que interferem na decisão do Irã de proceder ou não com o enriquecimento? Não têm nada a dizer”, expressou Khamenei.
Aos gritos de “Abaixo os EUA” e “Abaixo Israel”, Khamenei também condenou o genocídio promovido pelo regime sionista em Gaza, e afirmou que países, especialmente islâmicos, que insistirem em manter relações com Israel estarão “marcados pela vergonha”. “Uma aliança com o regime sionista não os deixará seguros, porque o regime sionista está desmoronando”, frisou.
O Brasil de Fato esteve presente na cerimônia do aniversário da morte de Khomeini, que não pode ser filmada ou fotografada. Por questões de segurança, todos foram orientados a deixar no hotel câmeras, celulares e outros objetos pessoais. Sabendo que Israel assassinou Ismail Haniyeh, líder político do grupo palestino Hamas, em plena capital iraniana, Teerã, em julho de 2024, e deixou nove pessoas mortas e milhares de feridos no Líbano em setembro do mesmo ano ao explodir, em locais públicos, pagers usados pelo grupo Hezbollah, a precaução não soa exagerada.
A reportagem partiu para o evento às 7h da quarta-feira (4) no horário de Teerã – 1h no horário de Brasília – em ônibus organizados para transportar delegações internacionais. Jornalistas, religiosos, estudiosos e representantes políticos de Rússia, Afeganistão, Turquia, Venezuela e outros países acordaram cedo para acompanhar a fala do líder do país, que representa a maior força militar de resistência à ocupação da Palestina.
Passando pelas arborizadas ruas de Teerã, é possível ver por toda a parte imagens simbólicas de um país marcado pela guerra. Homens mortos nas inúmeras batalhas travadas pelos iranianos desde a revolução islâmica de 1979, tratados como mártires, estão estampados em cartazes, outdoors e pintados em laterais de prédios. Rostos como o do presidente Ebrahim Raisi, morto em um acidente de helicóptero em 2024, do general Qassem Soleimani, assassinado pelos EUA em janeiro de 2020, e muitos outros, menos conhecidos no Ocidente.
Além deles, as duas faces mais presentes são as do líder Khomeini e seu sucessor, Khamenei. Na manhã desta quarta, elas eram quase onipresentes no trajeto até o mausoléu. Bandeiras do Irã e pretas adornavam viadutos, simbolizando o luto por Khomeini.
Após pouco mais de uma hora de viagem, os ônibus chegaram ao mausoléu. O local é enorme. Sua cúpula e suas torres podem ser vistas de muito longe na paisagem plana e seca. Dezenas de veículos chegam ao local, com homens com faixas vermelhas na cabeça, em referência à guerra travada contra o Iraque, entre 1980 e 1988. Mulheres com a veste negra completa, deixando apenas o rosto exposto, levam crianças, algumas vestidas com roupas militares.
Policiais e soldados da Guarda Revolucionária organizam a segurança. Uma primeira revista é feita na entrada. Logo depois, somos orientados a retirar os sapatos e entregá-los em guarda-volumes ,junto com qualquer outro objeto – um caderno e uma caneta, no caso da reportagem. Tudo é colocado em um saco plástico lacrado em troca de um ticket com um número em Farsi.
De meias, seguimos para um local onde distribuíam água, suco de caixinha e um bolinho. Dali, uma segunda revista, que dessa vez procurou algo no cabelo crespo com corte afro do repórter. Nada encontrado, seguimos para a entrada.
O templo é belíssimo. Se por fora impressiona pelas dimensões, os mosaicos e padrões coloridos das paredes internas, os lustres gigantescos no teto, tudo é deslumbrante. Ao centro, numa construção menor de tom esverdeado, repousa o corpo de Khomeini.
Khamenei já estava falando em um balcão central quando conseguimos chegar aos nossos lugares e pegar os aparelhos com tradução simultânea para o inglês. Uma multidão o acompanhava: aos olhos, poderiam chegar perto de 100 mil pessoas.
Sua fala parte da religiosidade, tratada como elemento identitário do povo iraniano – ao menos aos olhos do governo construído após a revolução, que construiu no país um Estado religioso. O sucessor do aiatolá que liderou a revolução de 1979 resgata os princípios da revolução islâmica, definidos por Khomeini, líder físico e espiritual dessa revolta bem sucedida de um país periférico contra os interesses das potências ocidentais. Exalta o princípio da independência, que levou o país a construir um complexo militar e industrial de alta tecnologia, com capacidade para construção de drones como o Shahed, fundamental para a Rússia em dado momento da guerra contra a Ucrânia, fabricado pela empresa estatal iraniana Hesa.
“Independência é seguir o próprio caminho, não importa o que digam os EUA, a Europa ou outras nações”, disse Khamenei.
Foi a deixa para entrar no tema do acordo nuclear. Khamenei descreve a importância da pesquisa desenvolvida “por jovens e cientistas iranianos” que levou o país a ser um dos poucos – “menos de dez”, segundo o aiatolá – a dominarem o ciclo completo da indústria nuclear. “E suas aplicações não são apenas para produção de energia limpa e barata”, disse.
“A indústria nuclear é uma indústria-mãe. Muitos campos científicos são afetados por ela. O enriquecimento do urânio é a chave para a questão nuclear, e os inimigos se concentraram no enriquecimento”, completou.
O ponto central da disputa é o enriquecimento do urânio, processo que torna o minério ativo como fonte de energia nuclear. Os EUA querem que o Irã abra mão do direito de realizar esse processo, fazendo com que o país compre o material já enriquecido de outros países – entre eles, os EUA, para evitar o uso militar da energia nuclear.
“A primeira palavra dos EUA é que o Irã não pode ter uma indústria nuclear. Nossa resposta às afirmações sem sentido da América é clara: eles não podem fazer droga nenhuma a respeito”, disse Khamenei, arrancando do público gritos de “Abaixo os EUA”.
Na parte final de sua fala, que durou pouco mais de uma hora, Khamenei trouxe o foco para o genocídio que Israel está cometendo em Gaza. Ele cobrou governos islâmicos par que tomem posição e ajudem a impedi-lo.
“Governos islâmicos hoje têm muitas obrigações em relação à questão palestina. Hoje não é o tempo para polidez, consideração ou neutralidade. Hoje não é o tempo para permanecer em silêncio”, afirmou. “Eles estão matando pessoas com bombas e balas, Quão vil, quão desprezível e maus os humanos podem ser! A América é cúmplice desse crime e deve ser expulsa dessa região”, afirmou, fazendo a plateia se levantar e entoar palavras de ordem.
“Se qualquer governo islâmico apoia o regime sionista de qualquer forma que for, a vergonha eterna certamente permanecerá em suas testas. Governos deveriam saber que confiar no regime sionista não criará segurança para nenhum governo. Ele está colapsando por decreto divino, e se Deus quiser, não se manterá por muito tempo.”