Porto Alegre pós-enchente: entre o abandono do poder público e a resposta do Judiciário

A enchente que devastou Porto Alegre em maio de 2024 baixou, mas os efeitos da tragédia ainda marcam a vida de milhares de moradores. O poder público municipal tem sido alvo de críticas pela ausência de políticas habitacionais e pela falta de respostas efetivas. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) tem atuado para tentar garantir dignidade às famílias afetadas, por meio de ações de danos morais e materiais.

“A água baixou, mas os traumas e os estragos ficaram. Para a prefeitura, é como se não existíssemos”, desabafa Débora Santana Vasconcellos, moradora da Rua D, na vila Santo André, localizada no cruzamento da avenida Ernesto Neugebauer com a BR-290, em Porto Alegre. Ela e os três filhos seguem vivendo em uma casa condenada pela Defesa Civil, devido aos estragos na estrutura do imóvel causados pela enchente.

Segundo o Centro Estadual de Pesquisas em Sensoriamento Remoto e Meteorologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Porto Alegre possui aproximadamente 204 áreas de risco, onde mais de 7 mil pessoas vivem sob ameaça constante de enchentes, deslizamentos e outros desastres. Muitas dessas famílias permanecem desassistidas, em locais insalubres e sem qualquer perspectiva de realocação.

Vasconcellos relata ter recebido apenas o Auxílio Reconstrução de R$ 5,1 mil, repassado pelo governo federal. Ela afirma que não houve vistoria do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) para o programa Compra Assistida, nem oferta de aluguel social. A cada chuva, a casa é alagada. “A água da enchente se misturou com o esgoto a céu aberto, causando doenças nos meus filhos”, lamenta. Durante o pico da enchente, o único refúgio possível foi sob um viaduto.

Moradora da região há 29 anos, Vasconcellos denuncia a total ausência da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). “Seguimos vivendo no mesmo lugar que foi condenado. Abandono total.”

“A água da enchente baixou, porém os estragos e traumas ficaram. Para a prefeitura é como se não existíssemos”, desabafa Débora Santana Vasconcellos – Foto: Roberto Martinez

Recomeçar: “é preciso que olhem para nós”

Moradora mais antiga da vila Santo André, Inês Jussara Santana conta que a comunidade já vivia em abandono antes da enchente. Após a tragédia, a sensação de desamparo se intensificou. “Moro num imóvel que ficou com água até o teto. Meu marido é acamado e tenho um neto pequeno no mesmo imóvel. Não tive nenhum acolhimento da rede pública no momento que mais precisei.”

Assim como todos que tiveram suas casas inundadas, Santana perdeu tudo. “É um recomeçar, mas para recomeçar é preciso que olhem para nós, da Vila Santo André.”

“É um recomeçar, mas pra recomeçar é preciso que olhem para nós da Vila Santo André”, afirma Inês Jussara Santana – Foto: Roberto Martinez

A reportagm visitou a vila no final de abril e em junho. Em contato realizado nesta terça-feira (29) com as moradoras, Inês Jussara Santana informou que conseguiu fazer o cadastro pelo Demhab. “Agora estou esperando me chamarem, pode ser que nessa lista que vai sair agora chamem. Todo esse tempo esperando e ainda não fui contemplada.” O cadastro de Santana foi feito em julho.

Já Débora Santana Vasconcellos não foi contemplada. Segundo ela, o departamento considerou sua casa habitável. “Esse mês que deu enchente na ilha a minha casa encheu de água e eu fiquei em abrigo e o departamento disse que minha casa estava boa para morar. Eu vou ter que procurar a Defensoria porque, como tu viu, não tem condição de morar.”

Em Porto Alegre, cerca de 5,9 mil famílias estão cadastradas no programa Compra Assistida, das quais 1,9 mil imóveis foram contratados até o início de julho.

Ocupação Povo Sem Medo exige solução definitiva

Na zona norte da cidade, a Ocupação Povo Sem Medo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), também enfrenta o abandono. Com oito anos de existência, o território está em negociação com o município para garantir moradia definitiva, em processo mediado pelo Ministério Público Estadual. Recentemente, a prefeitura iniciou o laudo das casas.

A área ocupada funcionava como aterro e, segundo o movimento, não possui condições técnicas para habitação permanente. Por isso, as famílias reivindicam terrenos públicos para a construção de moradias através do programa Minha Casa Minha Vida – Entidades.

“As famílias estão reivindicando uma área onde possa ser construída habitação de qualidade. Já solicitamos oficialmente ao município áreas para isso. Mesmo assim, uma dessas áreas na zona norte foi vendida para a iniciativa privada”, denuncia Eduardo Osório, da coordenação do MTST.

“Nunca imaginei que presenciaria uma enchente daquele tamanho”, conta Volmar do Santos Luz – Foto: Roberto Martinez

Durante a enchente, mesmo estando em um ponto mais elevado, a ocupação ficou completamente cercada pelas águas. “A massa do aterro foi comprometida. Os taludes cederam. Não sabemos como o solo está reagindo”, alerta Osório. Ele cobra uma solução urgente: “É preciso garantir que as famílias sejam retiradas com segurança e tenham acesso à moradia definitiva antes de uma nova enchente”.

Volmar do Santos Luz, residente há aproximadamente oito anos na ocupação Povo Sem Medo, trabalha com a coleta de materiais recicláveis. “Nunca imaginei que presenciaria uma enchente daquele tamanho. Meu terreno fica na parte mais baixa da ocupação, logo, fui o mais atingido, perdendo todo meu material e vendo a água me deixar ilhado.” Ele relata que só conseguiu sair de casa com o auxílio de um barco conduzido por voluntários.

Segundo Luz, em nenhum momento houve amparo do poder público. “Consegui ficar na casa de uma sobrinha até a água baixar. Quando retornei, não fui procurado para nenhum tipo de cadastro da prefeitura. Me senti esquecido.”

Justiça promove ações para atingidos

Diante das denúncias e do volume de processos envolvendo a enchente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul criou o “Núcleo de Justiça 4.0 – Enchentes 2024”, composto por cinco magistrados e magistradas sob coordenação do juiz de Direito Mauro Peil Martins. Lançado em outubro de 2024, o núcleo já contabiliza mais de 12 mil processos em tramitação relacionados à catástrofe. A missão do núcleo é julgar com celeridade as ações judiciais decorrentes da tragédia ambiental que devastou dezenas de municípios gaúchos.

Em 22 de julho, foi proferida uma das primeiras sentenças relacionadas às enchentes. O Estado do Rio Grande do Sul foi condenado, em ação ajuizada em Canoas, ao pagamento de indenização no valor de R$ 10 mil. A decisão levou em conta o rompimento do dique de Canoas e problemas estruturais na região, cujas falhas em obras preventivas contribuíram para o agravamento dos danos à população.

“Nosso papel é garantir que a legislação seja cumprida”, afirma juiz

O juiz Mauro Peil Martins explica que moradores afetados pelas enchentes de 2024 têm ingressado com ações indenizatórias contra o estado e os municípios, solicitando principalmente compensações por danos morais, com valores médios em torno de R$ 10 mil. Parte das ações também requer indenização por danos materiais, mas esse tipo de pedido é menos frequente. Segundo o magistrado, muitas pessoas não possuem documentação que comprove os bens perdidos, já que objetos e notas fiscais foram destruídos pela água.

Buraco aberto na parede da casa de Débora como solução para o escoamento mais rápido da água no período da enchente – Foto: Roberto Martinez

Martins destaca que o papel da Justiça, nesse contexto, não é atuar de forma ativa na cobrança de políticas públicas, mas sim julgar os pedidos que chegam ao sistema. “O nosso papel como Judiciário é receber essas demandas ajuizadas pelas pessoas e definir se há o direito à reparação que estão postulando”, afirma.

Ele também menciona que alguns processos tratam do não recebimento de benefícios criados pelo poder público, como o Pix e o SOS RS. “Muitos desses processos já foram julgados”, acrescenta.

O Núcleo de Justiça 4.0 foi criado justamente para dar celeridade e padronização a essas demandas. “O fato de as ações tramitarem no núcleo torna mais sério o andamento. Todos seguem o mesmo padrão e nossas decisões são semelhantes. A intenção é que os julgamentos tenham decisões o mais semelhantes possível”, explica.

Como acionar a Justiça

Martins também esclarece que pessoas que vivem em ocupações, mesmo sem registro de propriedade do terreno, podem ingressar com ações judiciais. “O que nós estamos pedindo é que apresentem um comprovante de residência. Não é necessário comprovar propriedade. Pode ser uma conta ou até uma declaração própria e de vizinhos.”

Segundo o magistrado, o recomendado é que essas pessoas busquem a Defensoria Pública ou escritórios de advocacia, preferencialmente aqueles já familiarizados com esse tipo de ação. “Normalmente, não há cobrança de honorários antecipados. O pagamento ao advogado costuma ser feito após a sentença, com desconto sobre o valor da indenização”, explicou.

Embora a enchente tenha ocorrido em maio de 2024, o ajuizamento das ações demorou um pouco devido à necessidade de reunir documentação e seguir exigências processuais. No entanto, com os escritórios já familiarizados com os trâmites, os processos tendem a ser julgados com mais agilidade. “É bem possível que as ações sejam julgadas com pouco mais de seis meses”, avaliou.

Sobre o papel do Judiciário em eventos climáticos extremos, Martins é enfático: “A Constituição garante a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e é papel do Estado agir para proteger esse meio. O Judiciário atua para que o Estado cumpra seu dever e para garantir que as consequências dos desastres sejam minimizadas.”

Ele reforça que, uma vez proposta a ação, cabe ao Judiciário fazer valer a legislação, assegurando que o Estado seja responsabilizado quando necessário e que os lesados recebam a compensação por danos morais ou materiais. “O Judiciário é inerte, ele só atua quando provocado”, enfatizou.

Em mensagem final, o juiz destacou a importância do acesso à Justiça nesse momento. “Tivemos um evento histórico, uma enchente de enorme proporção, e hoje a população busca a reparação de seus prejuízos. Nos estruturamos com o Núcleo das Enchentes para garantir uma jurisdição séria e eficaz, com decisões justas e aplicação correta da legislação. Estamos à disposição da população para que seus direitos sejam reconhecidos e que a reparação ocorra da forma mais rápida e justa possível.”

Ações emergenciais e solidariedade institucional

Logo após a tragédia, o TJRS articulou uma ampla rede de apoio institucional e emergencial. A Presidência da Corte procurou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para mobilizar o Poder Judiciário de todo o país. Com isso, foi possível repassar mais de R$ 200 milhões à Defesa Civil, recursos provenientes de tribunais de diversas regiões. Ao todo, 95 municípios foram beneficiados.

Além da ajuda financeira, o tribunal também doou mais de 2,4 mil itens, entre computadores, móveis e aparelhos de ar-condicionado, a órgãos públicos estaduais, prefeituras e delegacias, contribuindo para a retomada das atividades após a destruição causada pelas cheias.

Justiça itinerante e resgate da cidadania

Dois projetos emergenciais da Corregedoria-Geral de Justiça (CGJ), “Recomeçar é Preciso” e “Justiça Itinerante Emergencial”, mobilizaram voluntários entre magistrados, servidores e servidoras, levando serviços básicos a milhares de pessoas. Em um mês e meio, mais de 60 mil documentos civis foram emitidos gratuitamente para pessoas que perderam tudo com a enchente.

Em parceria com o governo do estado, o TJRS também integrou a ação Central Cidadania, promovida no estacionamento do Shopping Total, em Porto Alegre. Durante uma semana de atendimento, foram prestados mais de 10 mil serviços a 4,8 mil pessoas.

Emergência climática e desigualdade

A maior catástrofe climática do RS atingiu 90% do território estadual, deixando mais de meio milhão de pessoas desabrigadas. Algumas conseguiram retornar e limpar suas casas, mas cerca de 100 mil residências foram destruídas em 478 dos 497 municípios gaúchos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). No total, o desastre impactou mais de 2,3 milhões de pessoas, desalojando mais de 570 mil.

Apesar da garantia, tanto do governo federal quanto estadual, de que todas as pessoas cadastradas nos programas de moradia lançados após a tragédia serão contempladas, as famílias entrevistadas pela reportagem seguem aguardando uma resposta definitiva.

“Recomeçar não é só limpar a lama. É garantir moradia, saúde, alimento, escola para os filhos. Sem isso, a enchente não acabou para nós”, afirma Inês Jussara Santana.

A reportagem procurou a Prefeitura de Porto Alegre, que naõ se manifestou. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

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