Ainda no contexto do Julho das Pretas, mês de luta das mulheres negras latino-americanas e caribenhas, o debate sobre saúde mental é um dos temas que assumem centralidade quando se pensa em um projeto político de reparação e bem viver. Pesquisas apontam que as mulheres negras são o grupo mais vulnerável em diversos recortes da área da saúde – são mais vitimadas por doenças crônicas, mais expostas à violência, sofrem mais com a mortalidade materna e lidam com maior desigualdade no acesso a exames preventivos e diagnósticos, por exemplo. Como pano de fundo desses problemas, enfrentam cotidianamente o racismo e o machismo, tanto em âmbito público quanto privado.
A maior vulnerabilidade socioeconômica e a violação constante dos direitos humanos tornam as mulheres negras mais vulneráveis ao adoecimento psíquico. Mas será que os profissionais de saúde mental estão preparados para lidar com essa dimensão estrutural do problema?
Para entender melhor esse tema, o Brasil de Fato Bahia conversou com a psicanalista e colunista Edlamar França. Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), psicanalista em formação pela Escola de Psicanálise Après Coup (POA), ela atua na clínica com psicoterapia na perspectiva da psicanálise amefricana. Baseada na contribuição de intelectuais como Lélia González, a psicanálise mmefricana, segundo França, aponta outro modo de analisar o sofrimento psíquico, a partir de um entendimento mais amplo sobre a formação e desenvolvimento da sociedade.
Confira a entrevista
Brasil de Fato Bahia: Quais são os principais desafios relativos à saúde mental das mulheres negras que a psicanálise tem lidado atualmente?
Edlamar França: Do modo como percebo, as questões são várias, e todas são igualmente importantes porque estruturam o modo como a sociedade se organiza para atender às necessidades das populações consideradas minorias, sobretudo as mulheres negras. Elas formam a grande base da pirâmide social e são as mais atingidas com as desigualdades sociais de gênero, raça e classe. E é óbvio que uma vida precarizada, marcada por violências interseccionais, impactam intensamente a saúde integral das mulheres negras, com destaque para o que estamos chamando de saúde mental.
A psicanálise é um campo vasto e diverso, há muitas escolas e modos de transmissão de um conhecimento sobre o inconsciente, que é sempre transitório e movente. Contudo, quando observamos os movimentos da psicanálise, é possível perceber que ainda é brancocêntrica e colonizada pelos discursos europeus de como o inconsciente é constituído. A linguagem e a escuta psicanalíticas são praticadas tendo o branco europeu como referência para se pensar as subjetividades de um povo diverso como o nosso, sem levar em conta as matrizes africanas e indígenas que formam nosso inconsciente também.
O que posso dizer sobre como a psicanálise tem lidado atualmente com a saúde mental de mulheres negras é que sendo ainda brancocêntrica, europeizada e heteronormativa, tem lidado com a própria colonialidade que lhe constitui e a dificuldade em aceitar que há cosmopercepções de mundos diferentes da europeidade. Estas percepções também têm agência no campo psicanalítico e trazem importantíssimas contribuições para analisarmos a complexidade de um povo amefricano. Virgínia Bicudo, Lélia González, Isildinha Baptista Nogueira, Eliane Marques são alguns dos nomes que produzem um furo no discurso psicanalítico colonizante.
A partir da psicanálise amefricana, como esses problemas podem ser entendidos também de forma coletiva, como expressão do racismo e do machismo enfrentado por essas mulheres?
Angela Davis uma vez disse: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Isso quer dizer que as mulheres negras são a base de uma sociedade, elas dão sustentação e manutenção do cuidado com suas famílias e comunidades, fazem a economia girar e produzem riquezas com seus trabalhos muitas vezes precarizados e informais. Como também, quando organizadas, conseguem transformar a sociedade interferindo na política, no modo como o Estado promove os direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos.
Essa mulher é historicamente sobrecarregada pelo papel que lhe é destinado socialmente, fadada ao eterno cuidado de todos e muitas vezes abdica de si mesma e de seus desejos. Por estar na base da pirâmide social, é a grande parte da classe trabalhadora, periférica e pobre, cujos recursos materiais de manutenção da vida são precários. É aquela que enfrenta jornadas de trabalho extenuantes e vínculos empregatícios abusivos e frágeis. Por ser mulher e negra, é impactada pelo machismo dentro e fora de seus núcleos de sociabilidade e pelo racismo estrutural que, em muitos casos, a impede de mover-se com suas potências.
É a mulher negra que, mesmo sobrecarregada e fragilizada, ainda encontra forças para educar seus filhos, muitas vezes sozinha, e para cuidar de seus pais e seus maridos. É também aquela impactada no campo afetivo por ser tratada como objeto de satisfação sexual dos homens de modo geral, e não aquela que também merece vínculos de amor, apoio, cuidado e segurança.
A mulher negra é a que se move para garantir que o filho e o companheiro não sejam capturados por um sistema de segurança que nos mata. Quanto a este assunto, indico as produções de Carla Akotirene, que discute com muita seriedade e de forma orgânica sobre interseccionalidades e o sistema jurídico, cujo projeto político é o encarceramento e genocídio da população negra, atingindo sobremaneira os homens negros.
Lélia González foi filósofa e antropóloga, uma intelectual negra que com suas ideias contribuiu para instituir na agenda do movimento de mulheres a discussão sobre raça e gênero, analisando a realidade das mulheres negras tão distinta das feministas brancas. O termo “amefricanidade”, cunhado por ela, numa perspectiva psicanalista, é um furo na língua que denuncia uma história sobre as Américas sem a participação dos povos africanos e indígenas e suas contribuições na formação de um povo e sua cultura.
Com isso, ela inclui as diferenças que a branquitude europeizada tentou deixar de fora da História e de todas as nossas produções. Mas, sempre lhe escapa porque na formação do nosso inconsciente, apesar do racismo ser a lei que estrutura a nossa sociedade, os filhos dessa nação têm como parte de sua constituição a relação com a mãe preta. Aquela que cuidou, amamentou e lhes ensinou as primeiras palavras. A mãe preta é a mucama de outrora, a babá de hoje e as mulheres negras que ofertam seus cuidados com seus trabalhos e suas ideias. É o “pretuguês” que essa mãe transmite junto com o legado de seus antepassados e ancestrais.
O que estamos construindo numa psicanálise que chamamos de amefricana é a partir dessas provocações de Lélia González. E também de outras e outros intelectuais negros que tem denunciado o epistemicídio. Lélia, a partir do campo psicanalítico, nos forçou a pensar a constituição da nossa subjetividade nessa intersecção das matrizes europeias, africanas e indígenas. Deu contorno à nossa neurose cultural com suas ideias e palavras. E ao fazer esse furo na psicanálise, institui outro modo de analisarmos o sofrimento psíquico, portanto a saúde mental da população negra. Ou seja, uma sociedade estruturada pelo machismo e pelo racismo é estéril, vil, obscurantista, produtora de traumas e sofrimentos para as pessoas não brancas.
Diante desse cenário, que tem um fundo coletivo e estrutural, quais caminhos de enfrentamento possíveis para esses desafios?
Do ponto de vista macropolítico, se o problema é coletivo e estrutural, há que se pensar em saídas coletivas e estruturais. A organização social é fundamental e a participação é das mais diversas, porque são muitas as dimensões que o problema precisa ser encarado e transformado. A mobilização de pessoas em torno desse motivador comum nos dá uma noção de pertencimento, comunidade e solidariedade em que não estamos sozinhas. E passamos a fazer parte de uma rede de apoio mútuo maior.
A própria organização social contribui para pensar e criar mecanismos que irão interferir na estrutura social, como as políticas públicas, no sentido de diminuir as desigualdades de gênero e raça e tornar o espaço público e privado mais acolhedor para as mulheres negras e suas diversidades.
No que tange à psicanálise, a branquitude psicanalista precisa aceitar que no campo psicanalítico também há a manutenção do racismo em suas estruturas e modos de produzir escuta psicanalítica. Que a raça é esse ponto não pensado pela colonialidade que lhe constitui e isto impacta a produção de saúde e movimentos de libertação de pessoas não brancas, numa escuta que não vê, não ouve e não se afeta com a realidade histórica que se repete como sintoma desde a travessia transatlântica traumática.
E é nesse sentido de inventar uma outra psicanálise, uma psicanálise amefricana, que tenho me proposto juntamente com um grupo de psicanalistas a criar uma escuta e análise dos sofrimentos psíquicos a partir das provocações de Lélia González e Eliane Marques, dos nossos orikis e itans, da nossa mitologia afroindígena e da história não contada de nosso povo tão presentes nas revoltas, nas tradições negras e indígenas e manifestações político-culturais. Lançamos a Revista de Psicanálise Bô Kibunda como resultado dessas provocações ao campo psicanalítico e organizamos um ciclo de debates aberto a todas as pessoas interessadas em intercambiar ideias sobre a formação subjetiva de sujeitos amefricanos. Quem quiser saber mais sobre o ciclo, podem acessar os perfis @edlamarfranca e @aprescoupoapsicanalise.
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