“Rua não é lugar de morar”: o recomeço de dona de casa que já viveu nas ruas

Pessoa em situação de rua
Pessoa em situação de rua no ES. Foto: TV Vitória

Por quase um ano, a rua foi a única casa de Sandra Pereira. Entre recaídas no álcool, noites em calçadas e a solidão das praças, ela viveu o que descreve como “um lugar onde não há sentimentos, só tristeza”.

Hoje, longe da dependência química, com teto e esperança ao lado da família reconstruída, Sandra é a prova de que receber assistência social pode ser o ponto de virada para quem perdeu quase tudo.

Assim como ela, milhares de pessoas vivem em situação de rua, no Brasil e no Espírito Santo. Em março deste ano, o Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal registrou 335.151 brasileiros nessa condição, um aumento em relação aos 327.925 contabilizados em dezembro de 2024. 

No Espírito Santo, estimativa do Ministério Público do Estado (MPES), realizada em outubro de 2024, aponta cerca de 6,9 mil pessoas vivendo nas ruas, sendo 2.140 somente na Grande Vitória.

Os números ajudam a dimensionar o desafio, mas não revelam toda a complexidade da questão. Dependência química, conflitos familiares, desemprego e problemas de saúde mental estão entre os principais fatores que levam as pessoas a viverem nas ruas.

Sandra Pereira, que já morou nas ruas, e seu filho
Sandra Pereira, que já morou nas ruas, e um de seus filhos: mudança de vida. Foto: TV Vitória

Foi nessa rede de vulnerabilidades que Sandra se perdeu, aos 25 anos, até encontrar no trabalho persistente de profissionais do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e de outras instituições o apoio necessário para reconstruir a sua vida.

Sandra, que é dona de casa e mora na cidade de Santa Teresa, região Serrana do Estado, conta que o caminho percorrido até se ver vivendo nas ruas começou quando o álcool deixou de ser apenas um hábito para se tornar dependência.

A perda da guarda dos filhos foi o gatilho para uma espiral de recaídas, internações e idas e vindas entre casas improvisadas e calçadas. “Na hora que dava fome, eu bebia para não comer“, lembra Sandra.

Por meses, a rua foi sua única morada, marcada por noites ao relento e pela incerteza de conseguir o básico para sobreviver.

O ponto de virada veio de forma inesperada. Ao descobrir uma gravidez de três meses, Sandra decidiu abandonar de vez a bebida. “Ninguém acreditava que eu tinha parado. Mas a gravidez me fez ter forças”, conta. 

Mesmo assim, o processo de recomeço exigiu muito mais do que força de vontade de Sandra: foi preciso encontrar apoio. O Centro de Referência Especializado de Assistência Social passou a ser presença constante, garantindo encaminhamentos, acompanhamento psicológico e psiquiátrico, transporte para consultas e até apoio em procedimentos médicos, como as cirurgias que ela fez após um problema de visão.

Hoje, aos 47 anos, Sandra vive com o marido, conseguiu retomar a guarda dos filhos, não consome mais álcool e mantém acompanhamento médico.

A rua não é lugar de morar. Procurem ajuda, porque tem saída. É difícil, mas com força e fé, a gente consegue, diz a dona de casa, com a convicção de quem conhece os dois lados da vida.

Número é 14 vezes maior em 11 anos

O aumento da população em situação de rua no Brasil é um fenômeno que se intensifica ano após ano. Em dezembro de 2013, o Cadastro Único registrava 22,9 mil pessoas nessa condição. Pouco mais de 11 anos depois, em março de 2025, o número é 14,6 vezes maior: 335.151.

Os números são do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base em dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

A maior parte (88%) dessa população tem entre 18 e 59 anos, 9% são idosos e 3%, crianças e adolescentes.

Número de pessoas em situação de rua na Grande Vitória

No Espírito Santo, uma estimativa divulgada pelo Ministério Público Estadual, em outubro de 2024, apontou cerca de 6,9 mil pessoas em situação de rua.

Na Grande Vitória, a capital, Vitória, concentrava 766 pessoas, seguida por Vila Velha (510), Serra (416), Cariacica (223), Guarapari (194) e Viana (31). 

Entre janeiro e junho deste ano, os 83 Creas em funcionamento no Estado realizaram 55.688 atendimentos individualizados e 3.222 atendimentos em grupo, evidenciando o tamanho do esforço da rede socioassistencial para oferecer apoio a quem enfrenta a vulnerabilidade extrema.

Creas de Santa Teresa
Creas na cidade de Santa Teresa: são 83 centros de referência em funcionamento no Estado. Foto: TV Vitória

O papel decisivo da assistência social

Segundo a assistente social Vanderleia Coser, que acompanha a trajetória de Sandra há anos, no Creas de Santa Teresa, a persistência da equipe foi decisiva.

Eu mesma já resgatei Sandra da rua e levei para casa. A gente nunca desistiu. Sempre fazíamos de tudo para acompanhar: atendimento no Caps, no Núcleo, visitas… Hoje, ela está restaurada, com apoio da família e da igreja.

Assistente social Vanderleia Coser
Assistente social Vanderleia Coser conta o processo de recuperação de Sandra. Foto: TV Vitória

O trabalho do Creas inclui abordagem nas ruas, concessão de passagens para retorno a cidade de origem, oferta de banho e alimentação, além de encaminhamento para tratamento. 

Em Santa Teresa, onde Vanderleia atua, a maior parte das pessoas atendidas é de migrantes que chegam para a colheita do café. “Às vezes, conseguem trabalho, às vezes, não. Nosso papel é oferecer alternativas para que não fiquem sem apoio”, explica.

O papel do Creas e do Cras

Além dos 83 Creas, o Espírito Santo conta atualmente com 161 Centros de Referência de Assistência Social (Cras).

Enquanto o Cras atua na prevenção e no fortalecimento de vínculos, o Creas trabalha com casos em que já houve violação de direitos, como violência física, psicológica, negligência e situação de rua.

O nosso trabalho vai muito além de encaminhar para serviços. É ouvir, entender a história e criar um plano para que essa pessoa tenha chances reais de reconstruir a vida. Muitas chegam sem documentos, sem contatos e sem confiança em ninguém. É preciso persistência e respeito para conquistar esse vínculo, explica Vanderleia Coser.

Ainda segundo ela, cada história traz um conjunto de fatores que levou a pessoa para a rua. “Não existe um único motivo. Às vezes, é o uso de drogas, outras vezes, é um rompimento familiar, uma perda de emprego, uma doença. Nosso papel é mostrar que existe alternativa e que a pessoa não está sozinha”, completa.

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